A vacina afropessimista
Ou de como um artigo aparentemente inofensivo me tirou de uma onda muito errada
Tô lendo, finalmente, o Afropessimism, do Frank B. Wilderson III. Em inglês, por motivo de tradução saindo por 90 conto no Brasil. (Nota: eu acho bem triste de ver que tantos livros relevantes para determinadas lutas emancipatórias muitas vezes só chegam ao Brasil em edições “luxuosas” e preços exorbitantes; infelizmente, aquele “amor táctil” pelos livros, cantado pelo poeta, parece ser um prazer reservado às elites; o resto se vira com PDFs mal escaneados, “cavucados” em cantos obscuros da rede. Mas sigamos…). Tem mais de cinco anos que eu adiava a leitura, pois sabia que ia me perturbar. Tá perturbando. Ainda não terminei, é um catatau, mas já tô fritando bastante.
Meu interesse por esse assunto começou de um jeito meio inusitado, por conta de um artigo de uma jovem artista, crítica e curadora negra, Aria Dean, publicado na e-Flux, anos atrás: Notes on blacceleration. Na época, eu andava meio perdido, sozinho, errando de bar em bar em Vitória e, nesse estado de espírito, dedicava mais tempo que o necessário, e merecido, às leituras sobre aceleracionismo, em grande medida num esforço para tentar entender por que, diabos, um cara como o Mark Fisher tinha se envolvido com aquela bobajada no início de sua caminhada. (Eu entendi, mas não quero falar disso aqui, outro dia, quem sabe).
De certo modo, o texto da Aria Dean parecia sair desse mesmo lugar, o de um engajamento crítico com o “aceleracionismo de esquerda”, esse vírus que Alex Williams e Nick Srnicek (o impronunciável) tinham inoculado nas veias abertas da esquerda britânica, desde o lançamento do Manifesto Aceleracionista, lá por volta dos anos 10. O texto da Dean funcionou para mim como uma vacina, naquela época. E um dos componentes dessa vacina, eu sabia, era o afropessimismo. (Eu já estava vacinado, aliás, quando vi Pantera Negra, daí minha solidariedade incondicional ao Killmonger — my man! —, na época).
No contexto das discussões aceleracionistas, o texto da Dean me cativou, em primeiro lugar, porque soava despretensioso. Pelo menos no contexto do aceleracionismo. Algo que sempre me incomodava, em tudo relacionado ao movimento, era o ar de vaticínio que parecia exalar de cada frase. Dava para ver, no texto da Dean, que ela flertava com isso, que não saia totalmente do gênero, que respeitava o “cânone”, mas, diferentemente da maioria (branca, sim, mas isso é só detalhe, claro), dava para ver que ela hesitava, aqui e ali, entre uma e outra sentença. E esses hiatos de hesitação, em geral, precediam os melhores insights.
O afropessimismo, mobilizado por Dean, lançava uma suspeita sobre todo aquele otimismo tecnológico do “movimento” aceleracionista. Ao encampar a tese de Wilderson, de que a escravidão era o pecado original do capitalismo em seus primórdios e reaparecia, como sua salvação, sempre que ele se aproximava (tendencialmente?) do fim, Aria conferia a tudo aquilo ares mais sombrios. Com uma elegância discreta, parecia revelar os fundamentos racistas que estavam já na origem das teses de Nick Land, sugerindo, tacitamente, que nunca tinha existido um Land antes e outro depois do meltdown cerebral que ele parece ter sofrido: não havia uma cisão entre o jovem filósofo (supostamente) “brilhante” de Fanged Noumena e o velho ideólogo racista do Dark Enlightment: o iluminismo sombrio estava nas presas do númeno desde o princípio, tal qual o universo numa casca de noz.
A ironia é que o texto, de certo modo, revelava, também, uma proximidade mórbida entre o afropessimismo e o aceleracionismo landiano. E essa ironia passava pela sede de aniquilação.
Como aponta Vinson Cunningham, em sua resenha do livro para a New Yorker:
“Wilderson não opta por imaginar futuros possíveis. A única maneira de curar a condição de escravidão que aflige os negros, diz ele, é ‘o fim do mundo’. Terá que haver um fim absoluto para as coisas - um apocalipse. Das cinzas da civilização, algo verdadeiramente novo pode finalmente crescer. Como apressar este acerto de contas final? Wilderson não diz. Oferecer alguma prescrição adicional seria uma traição ao estilo de seu livro, e à forma de suas ideias”.
O aceleracionismo landiano, diferentemente do afropessimismo, também aspira a um fim de mundo, mas aponta um caminho pra isso. Trata-se de pisar fundo, intensificar, cada vez mais, o ritmo do capitalismo, em tese, grande motor da inovação tecnológica, até a substituição completa do homem pela máquina, ou, mas precisamente, pelo domínio abstrato do capitalismo. Um tecnoapocalipse, poderíamos dizer, se gostássemos de brincar de cyberpunk.
Há, no entanto, uma diferença importante entre apontar um caminho e apontar zero. No primeiro caso, o que está em jogo é a aprovação incondicional de um suposto sentido da história. No segundo, há uma recusa, igualmente incondicional, desse sentido. Uma recusa que se apoia na tese de que o que colocou essa máquina em funcionamento, lá atrás, foi a escravidão do negro, elemento essencial no processo de acumulação primitiva que abriu caminho para a industrialização. Como argumenta Eric Williams, o autor de Capitalismo e Escravidão:
“As plantações trabalhadas por escravos fizeram crescer o volume do comércio intercontinental, estimularam o desenvolvimento de todo um conjunto de indústrias de transformação (desde o refino de açúcar até as primeiras fábricas de tecido de algodão) e tornaram alguns portos atlânticos em prósperos comerciais. Assim foi como o tráfico co-triangular que da Europa levava para a África as quinquilharias (trapos, bijuteria, folha-de-flandres e espelhos) que depois eram trocadas por escravos, que depois eram vendidos na América e de cujos braços e pernas se extraiam as matérias-primas das primeiras manufaturas europeias, fez o capitalismo europeu, especialmente o capitalismo britânico. Sem as riquezas da América e sem os escravos e o comércio africanos, o crescimento econômico, político e militar dos Estados europeus teria ficado limitado, sem dúvida, a uma escala menor; talvez definitivamente menor. Com eles, o primeiro capitalismo se fez mundial e com toda razão, em Liverpool e em Bristol se dizia que ‘não há um só ladrilho na cidade que não esteja mesclado com o sangue de um escravo’”.
Quando Nick Land cerra fileiras com alguns expoentes da extrema-direita e do supremacismo branco nos Estados Unidos, só faz confirmar a diferença entre sua sede de aniquilação e o desejo apocalíptico de Wilderson. Se o afropessimismo desponta como um grito de desespero daqueles cuja carne – a mais barata, dizem – sempre esteve destinada a passar pelo moedor do Capital, o iluminismo sombrio é o só o ruído da manivela sendo girada pela mão branca do mercado. O flerte com o supremacismo branco como ápice do aceleracionismo landiano, dessa perspectiva, é um fenômeno absolutamente coerente. E corrobora precisamente a tese de Wilderson, de que o “gado negro” é o alfa e o ômega do capitalismo, está no princípio e no fim, na acumulação primitiva e no sacrifício (tendencialmente?) final.
Exagero? Não sei. Seria mesmo tão exagerado assim dizer que a violência policial, o encarceramento em massa e, volta e meia, o massacre puro e simples das populações negras — a necropolítica, enfim, para falar com Mbembe — é, hoje em dia, uma forma de lidar com o impacto social do capitalismo tardio, com a escassez de empregos, a precarização do trabalho e a perda do poder aquisitivo, e status, e uma parte significativa da classe média, sobretudo nos países centrais (mas não só)?
Há, em quase todo gesto extremo, e desesperado, alguns aspectos temerosos no pessimismo niilista de Wilderson. Talvez eu fale disso em outro texto, no qual pretendo discutir os insights de Iyko Day, autora que também li por causa da Dean, quanto aos lugares ocupados pelo negro e pelo nativo americano no processo de colonização da América do Norte. Diferentemente de Wilderson, Day não coloca brancos e indígenas como irmanados no racismo contra os negros. E, ao mesmo tempo, parece estar mais interessada em dialogar com o marxismo do que em “refutá-lo” como só mais um cúmplice do supremacismo branco, ocidental, europeu, cristão, etc. Mas deu de afropessimismo por hoje. Vou nessa.