Essa liberdade que vale mais do que o ar
Sobre bolsonarismo, integralismo e a liberdade dos tiranos e dos bandidos
Na reta final da eleição passada, em meio a um pico de ansiedade, me peguei retornando à bibliografia sobre Integralismo disponível na minha estante para tentar dar conta de um incômodo que experimentava toda vez que alguém, à esquerda do espectro político, insistia na importância de qualificar o bolsonarismo como nazifascismo. Revisitar o pensamento integralista, sobretudo a partir da figura de Plínio Salgado, foi a forma que encontrei, na época, se não de rejeitar essa aproximação, no mínimo, de matizá-la, ressaltando dissimilaridades entre um e outro fenômeno. Depois de um breve resgate dos principais conceitos mobilizados e ideias defendidas por Plínio Salgado, o que surgiu da comparação com o bolsonarismo, compreendido sobretudo a partir dos discursos e gestos do ex-presidente e de alguns de seus principais aliados, resolvi explorar a hipótese de que o acréscimo de uma ideia muito particular de liberdade ao slogan integralista — Deus, Pátria e Família –, operação realizada por Jair Bolsonaro no último debate presidencial do segundo turno, subvertia completamente os princípios de espiritualidade, comunidade e ordem que, no plano discursivo, pelo menos (mas não só) se encontravam na base do pensamento integralista. Recorri a uma distinção da crítica russa Svetlana Boym num esforço para delinear que liberdade era essa que o bolsonarismo colocava em jogo. Cito:
As mitologias culturais russas de identidade nacional são frequentemente baseadas em palavras que foram consideradas intraduzíveis. Por exemplo, em russo há duas palavras para verdade, pravda, que está relacionada à retidão e à lei, e istina, uma verdade mais verdadeira, relacionada a um ser mais profundo que, nas palavras de Vladimir Nabokov, não rima com nada. Da mesma forma, há duas palavras para liberdade, svoboda e volia. Svoboda parece remeter à palavra ocidental para “liberdade” [freedom], enquanto se diz que volia remete a uma liberação radical, uma “liberdade mais livre”, que rima com a falta de limites da estepe e os sonhos implacáveis dos rebeldes e bandidos. Etimologias mais atuais não se conformam a tais oposições culturais e revelam um uma história transnacional e cognatos comuns. Svoboda pode ser usada no plural, enquanto volia (o termo usado para significar a liberdade dos servos russos) é sempre singular. De acordo com um dos primeiros historiadores da concepção russa de liberdade, George Fedotov, svoboda pode incluir aquilo que John Stewart Mill chamou de “a liberdade do [domínio do] outro”, enquanto volia consiste normalmente em libertar-se de laços sociais que nos prendem. Nesse sentido, “a volia não se opõe à tirania, porque o tirano também é cria da volia”. Acontece frequentemente que a volia do bandido radical (…) mimetiza a liberdade radical do monarca absoluto, para quem tudo é permitido. Há uma curiosa codependência entra o fora da lei e o autocrata na mitologia cultural russa: “O bandido e o rebelde são ideais de volia na velha Moscou, como Ivan, o Terrível, é o Tsar ideal”, escreve Fedotov. Em outras palavras, os impotentes geralmente imitam os hábitos dos poderosos, compartilhando de seus sonhos de controle e dominação das massas.
(Boym 2010, 78–79)
Muito mais do que como forma de se libertar de um domínio — o domínio abstrato do capitalismo, por exemplo, ou o militar de um imperialismo –, o que parece estar em jogo nessa liberdade evocada pelo bolsonarismo é precisamente essa liberdade do bandido e/ou do tirano, expressa nesse desejo de se ver livre dos laços sociais para impor sua vontade, fazendo valer sua força.
Era o exercício dessa liberdade — ou dessa volia, para falar com Boym — que a gente via, por exemplo, no gesto do então chefe de estado ao perseguir o fiscal do Ibama que um dia o multou por estar pescando em local proibido; ou presidente do país que fazia questão de andar sem capacete nas motociatas que promovia com seus apoiadores; ou do mesmo que se recusava a usar máscara, no auge da pandemia do coronavírus, para andar “no meio do povo” dele. E parece ser também a esse o tipo de liberdade que aspiram — hoje ainda, a despeito da derrota seu líder nas urnas — os garimpeiros que invadem reservas indígenas (e vendem pra joalherias de renome), os madeireiros que derrubam árvores centenárias na floresta amazônica (e exportam), os grileiros que promovem queimadas para abrir mais espaço para a pastagem do gado. Uma liberdade que lembra muito aquela desfrutada pelo miliciano que exige de pequenos comerciantes o pagamento por seus serviços de segurança ou monopoliza a distribuição de gás e internet em áreas periféricas. A mesma autoriza o CAC (Caçador, Atirador, Colecionador) a promover uma chacina só porque perdeu umas partidas de sinuca.
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Essa semana, comentando um trecho desse texto, Rodrigo Nunes me chamou atenção para uma aproximação precipitada que eu fazia, no texto em questão, entre a estrutural formal do discurso contemporâneo “antiglobalista” e aquela do “antissemitismo” no contexto do nazifascismo. O que eu queria enfatizar, nesse gesto, era o modo como, nos dois casos, havia uma tentativa de colocar do mesmo lado uma elite capitalista (associada ao setor financeiro) e uma elite cultural (associada ao marxismo), supostamente unidas numa grande conspiração para acabar com os valores religiosos (Deus), nacionais (Pátria) e tradicionais (Família). A diferença, apontada por Nunes, é que no fascismo dos anos 30, o apelo ao nacionalismo era feito como forma de retomar o poder do estado, supostamente cooptado por uma elite corrupta e internacionalista, para poder controlar o capitalismo, ditar seus rumos, tudo isso em favor do povo, ou seja, da nação. Por mais que na prática isso tenha resultado em capitalismo de estado, na medida em que exigiu dos países fascistas a expansão do mercado por meio de uma política externa cada vez mais imperialista, o discurso utilizado para seduzir as massas foi esse. No caso do bolsonarismo — e de boa parte do discurso da extrema-direita mundial hoje — essa ideia de controlar o capitalismo parece ter saído completamente de cena, na maioria dos casos. O que se tem, via de regra, é uma fé incondicional no capitalismo, mais precisamente no livre mercado como única forma de restabelecer o lugar da nação, da pátria.
Uma pátria que, acima de tudo, “deixa cada um se foder do jeito que quiser”, como diria o ex-ministro Paulo Guedes. Isso porque a ideia de comunidade — nem que seja imaginada — parece estar ausente nessa ideia de nação que o bolsonarismo abraça. A nação do bolsonarismo se parece muito com a ideia de república que vigorava no Brasil colonial, na leitura de “certo bispo de Tucumã”, citado por Sérgio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil, que podemos parafrasear assim: verdadeiramente, nesta terra andam as coisas trocadas, pois toda ela não é nação, sendo-a cada casa[1].
Dessa perspectiva, se existe um projeto no bolsonarismo, não é de nação, mas de dominação, pura e simples, dos mais “fracos” pelos mais “fortes”. Daí a importância de tirar o estado do caminho, utilizá-lo para “passar a boiada”, para “desfazer muita coisa, desconstruir muita coisa”, abrindo espaço para uma competição desregrada, sem limites, uma substituição do império da lei pelo da volia. Nesse sentido, trata-se de um projeto absolutamente coerente com os rumos do capitalismo contemporâneo. Talvez venha desse alinhamento a impressão que Bolsonaro passa, para uma parcela significativa do eleitorado brasileiro, a de “mandar a real”, de falar “a verdade”, de mostrar “as coisas como são”. De modo que, pra isso, “até fake news é válido”, pois, por mais que seja montagem, por mais que seja mentira, por mais que seja ficção, é “verdade”, na medida em que traduz perfeitamente o dia-a-dia de muita gente. Gente que já não acredita na sociedade do trabalho, que durante muito tempo sustentou e equilíbrio político no Brasil, a despeito da desigualdade social. Gente para a qual a integração a esse mundo, a melhoria de vida “lenta e gradual” da condição econômica, a ideia de que a vida dos filhos será melhor que a dois pais, simplesmente deixou de fazer sentido. Gente que acredita que agora é “selva”.
É nesse sentido que, de certo modo, um círculo se fecha e o Brasil contemporâneo — que, no fundo, jamais foi moderno — hoje luta por um lugar ao sol no concerto das nações capitalistas justamente voltando às suas “raízes”. É que essa liberdade, que o bolsonarismo coloca acima de tudo, se parece muito com aquela liberdade do patriarca, nos tempos de colônia
Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-familias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra ‘família’, derivada de famulus, se acha estritamente vinculada à ideia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi.
Dos vários setores de nossa sociedade colonial, foi sem dúvida a vida doméstica aquela onde o princípio de autoridade menos acessível se mostrou às forças corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune de qualquer restrição ou abalo. Sem eu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturbá-lo ou oprimi-lo.
Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania”.
(Holanda 2002, 990)
Há diferenças evidentes, mais que evidentes, gritantes, entre a descrição da autarquia dos domínios rurais da era colonial e o poder político crescente daquilo que, recentemente, Mathias Alencastro (2022) chamou de mega-centro-oeste, em artigo escrito para a Folha de São Paulo, em outubro do ano passado. Se os domínios descritos pelo autor de Raízes do Brasil deviam sua soberania, em grande medida, ao isolamento — à sua existência relativamente marginal -, o “mega-centro-oeste” está profundamente conectado às cadeias longas do capitalismo contemporâneo. Não por acaso o artigo em questão começa como uma referência à China, um dos principais parceiros comerciais do agro brasileiro, e possivelmente um dos grandes responsáveis pelo seu lado mais pop. Se “[o] o sertanejo se especializou em narrar a rebelião do centro-oeste contra as elites litorâneas” (Alencastro 2022), é porque a balança do capital internacional hoje pende para o lado dele. “Os bancos voltaram a atender o setor rural e celebram em suas campanhas o homem do campo. A Faria Lima ostenta seus empreendedores, mas quem faz rodar a máquina são os traders de commodities” (Alencastro 2022). O que vemos, hoje, é um esforço organizado e relativamente bem-sucedido, até o momento, de transformar essa supremacia econômica em hegemonia política. Mas a soberania do “sertão” (ou do “Brasil do interior”, pra usar a expressão de Plínio Salgado), hoje, parece não depender disso para ser efetivamente exercida. A representação política parece ter muito menos a ver com a instrumentalização da máquina estatal para fins específicos do que com sua destruição, com a limitação daquele que talvez seja seu único papel no Brasil de hoje, que é o de apagar incêndios (às vezes, literalmente).
[1] A frase do bispo, segundo Sérgio Buarque: “(…) verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa” (Holanda 2002, 989).
Referências
Alencastro, Mathias. “Primeiro turno no Brasil mostrou que não será possível governar sem o “mega-centro-oeste”.” Folha de São Paulo, 9 de 10 de 2022
Boym, Svetlana. Another freedom: the alternative history of an idea. Chicago e Londres: Chicago University Press, 2010.
Holanda, Sérgio Buarque de. “Raízes do Brasil.” Em Interpretes do Brasil: Volume 3, por Silviano Santiago (Org.), 899–1102. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
Karatani, Kojin. The structure of world history. Durhan/Londres: Duke University Press, 2014.