Napolitanismo
Aquele que usa a tetralogia napolitana como desculpa para falar de família, universidade, aristocracia, luta de classes e da vida nesses não-lugares do capitalismo
Há infinitas razões para gostar da tetralogia napolitana, da Elena Ferrante, e muita gente já falou disso mais e melhor do que eu jamais seria capaz – ela mesma, inclusive. Quero falar de um aspecto que talvez seja marginal para a maioria das pessoas na história, mas que mexe comigo profundamente – há pelo menos seis anos. Na falta de criatividade, batizei esse negócio de “napolitanismo”.
No segundo volume da tetralogia, há uma breve passagem que trata do esforço da adaptação, e do sentimento de inadequação, da narradora, Lenu, cria de um bairro pobre de Nápoles, ao ambiente universitário de Pisa.
Nessa altura da narrativa, já sabemos que dentre as qualidades de Lenu está a obstinação. Embora conviva com uma insegurança quase ancestral, que é responsável por boa parte da tensão que existe entre ela e sua “amiga genial”, Lenu costuma compensar a suposta falta de talento com muita dedicação, esforço, disciplina e, não raro, sofrimento. Nada disso, entretanto, parece ser suficiente para ela na hora de lidar com a atmosfera aristocrática que encontra na universidade, povoada por gente abastada e famílias tradicionais, para quem tudo aquilo que demanda de Lenu um sacrifício ímpar, costuma vir quase que “naturalmente”.
As dificuldades começam a aparecer já no primeiro contato dela com a cidade. Era a primeira vez que ela saía de Nápoles. “Descobri que tinha medo de tudo”, ela conta. “Medo de errar de trem, medo de precisar mijar e não saber onde fazer, medo de que anoitecesse e eu não conseguisse me orientar numa cidade desconhecida, medo de ser roubada. Meti todo meu dinheiro no sutiã, como minha mãe fazia, e passei horas numa ansiedade alerta, que conviveu simultaneamente com uma sensação crescente de liberdade”.
Os grifos são meus. Sempre me encantou a maneira como esse parágrafo resume com uma elegância brutal esse processo de transição que a personagem atravessa. A maneira como evidencia a gravidade ambivalente desse momento em que a ela deixa a casa dos pais, a cidade, a rione, para experimentar, com uma “ansiedade alerta”, “uma sensação crescente de liberdade”. Curiosamente, é nesse instante que que ela se percebe metendo todo dinheiro no sutiã, como a mãe fazia...
Essa relação entre a experiência do medo e manifestações de uma espécie de herança familiar em nossos gestos é algo que sempre me fascinou (been there, done that & tal), precisamente pelo que carrega de unheimlich, ou infamiliar: esse familiar que causa estranhamento ao irromper, assim, fora de contexto. O que era até então muito próximo, talvez, próximo demais, torna-se, de repente, alienígena. Essa experiência de infamiliaridade vai se repetir em outras situações de estranhamento, que embora não remetam diretamente à família, remetem à terra natal, ao berço, ao lugar de nascimento.
Várias vezes no livro isso aparece no contato de Lenu com aspectos estranhos desses novos mundos além Nápoles com os quais ela começa a travar contato. Podemos dizer, nesse sentido, que se trata sempre de um duplo estranhamento: aquele desencadeado pela incapacidade de reconhecer o novo, com o qual não e tem familiaridade alguma; e aquele causado por desconhecer o velho, com o qual se perdeu subitamente o contato. É nesse não-lugar que Lenu precisa aprender a se movimentar para transformar efetivamente em “liberdade” isso que, até o momento, não passa de “uma sensação crescente de”. O caminho entre um ponto e outro dessa linha, no entanto, parece infinito, como nos paradoxos de Zenão.
O primeiro obstáculo que Lenu enfrenta parece um caso de mudança de patamar. De repente, tudo que nela era brilhante, se torna medíocre. “Cheguei à faculdade cheia de timidez e embaraço”, relata. “Logo me dei conta de que falava um italiano livresco, que às vezes beirava o ridículo, especialmente quando, bem no meio de um longo período rebuscado, me faltava uma palavra e eu preenchia o vazio italianizando um vocábulo dialetal: comecei a penar para me corrigir”.
O que Lenu percebe, nesse momento, é que os artifícios que ajudaram a levá-la até ali não serão suficientes para garantir sua permanência. Se na rione seu domínio do italiano era um diferencial, ali, é o mínimo. Um mínimo com o qual, diferentemente de seus colegas bem nascidos, ela não se sente à vontade.
E o problema não se limitava, no entanto, à forma de falar, mas implicava todo seu modo de ser, de agir, de estar no mundo. “Sabia pouco ou quase nada de convívio social, falava muito alto, mastigava fazendo barulho com a boca: precisei perceber o incômodo dos outros e tentar me controlar”.
É tudo parte de um longo processo de autoadestramento baseado nessa referência obscura, e não raro tirana, que é o olhar do outro. “Na ansiedade de me mostrar sociável, irrompia conversas, me pronunciava sobre assuntos que não me diziam respeito e assumia atitudes de muita intimidade: tentei então ser gentil, mas distante”. A gentileza – os bons modos, a discrição, a polidez – são recursos que a “civilização” nos legou para lidar com o não-familiar. Ser “civilizado” é, ao fim e ao cabo, aprender a ser “gentil, mas distante”. Estabelecer um limite tácito entre você e esse outro cujo olhar se constituiu em algoz.
O humor também pode funcionar como uma forma de marcar distância, sobretudo quando o direcionamos para nós mesmos. Porque ridicularizar-se exige um distanciamento, um esforço para ser ver de fora e, daí, transformar o constrangimento em riso: é o medo que produz o bobo da corte. “Uma vez uma garota de Roma, depois de eu perguntar não sei o quê, me respondeu fazendo um arremedo de minha cadência, e todas riram. Me senti ferida, mas reagi dando risada e acentuando o fundo dialetal, como se eu mesma debochasse de mim alegremente”.
Mas o riso do bobo, não raro, é só uma deixa para a gargalhada do soberano – uma estratégia de sobrevivência, um jeito de não perder a cabeça. Não era fácil para Lenu. Aos poucos, a sensação crescente de liberdade dava lugar ao sufocamento. “Nas primeiras semanas combati a vontade de voltar para casa e me trancar em minha dócil e habitual modéstia”. Mas Lenu, lembremos, era obstinada. Aos poucos, ela começa a descobrir um jeito de jogar aquele jogo, mesmo que subvertendo uma ou outra regra: “de dentro dela”, ela explica se referindo à “habitual modéstia”, “comecei pouco a pouco a me distinguir e agradar. Agradei a alunas, a alunos, a bedéis e a professores, aparentemente sem esforço. Mas na verdade me esmerei muito. Aprendi a controlar a voz e os gestos. Assimilei uma série de regras e comportamentos escritos e não-escritos. Submeti ao mais estreito controle o sotaque napolitano. Consegui demonstrar que era competente e digna de estima, mas sem nunca assumir ares esnobes, fazendo autoironia sobre minha ignorância, fingindo-me surpresa com meus bons resultados”.
O que desaparece, nesse esforço para dominar a arte de manejar expectativas, é a espontaneidade do gesto, a naturalidade, a liberdade, talvez. Tudo precisa ser submetido a uma rígida disciplina. Tornar-se “digna de estima” exige “competência”. E “modéstia”. É imprescindível não chamar atenção para si: é isso que reduz o peso do olhar do outro. É importante não incomodar, devir imperceptível, sempre que possível. Tanto melhor se der pra estar sempre um passo à frente, antecipar o movimento vigilante do olhar alheio.
“Sobretudo evitei fazer inimigos. Quando alguma das meninas se mostrava hostil, eu concentrava minha atenção nela, era cordial e ao mesmo tempo discreta, solícita, mas com compostura, e não mudava de atitude nem quando ela e tornava afável e vinha me procurar”.
Baixar a guarda, sob qualquer hipótese, seria um erro. Intimidade é vulnerabilidade, e toda vulnerabilidade identificável é passível de virar arma na mão do inimigo. Um inimigo do qual você depende. “Fazia o mesmo com os professores. Naturalmente com eles eu tinha mais cautela, mas o objetivo era o mesmo: ganhar seu apreço, sua simpatia e seu afeto. Circulava em torno dos mais intratáveis e austeros com sorrisos serenos e um ar devoto”. Essa atitude canina em relação àqueles representantes do poder, detentores de influência e reputação, torna-se, pouco a pouco, uma exigência à qual se busca atender cada vez mais artificiosamente. Mantendo, sempre, a devida distância, toda compostura que a hierarquia demanda. Porque diante deles toda frase, todo gesto, converte-se em auto de fé. Mais do que às provas, o “devoto” precisa se submeter às provações que lhe são impostas. E sentir-se grato por isso.
“Prestei os exames com regularidade, estudando com a costumeira e feroz autodisciplina. Ficava aterrorizada com a ideia de me sair mal e perder aquilo que desde o início me parecera, apesar das dificuldades, o paraíso na terra: um espaço todo meu, uma cama só para mim, uma escrivaninha, uma cadeira, livros, livros e livros, uma cidade em tudo diferente do bairro e de Nápoles, cercada apenas por gente que estudava e era propensa a discutir o que estudava”.
Nesse relato de Lenu as raízes monásticas da universidade ficam à mostra: elas herdaram dos mosteiros o lugar de “enclave no interior de uma sociedade geralmente mais diferenciada e complicada”, como aponta Fredric Jameson, que vê no ideal e na clausura da vida monástica uma das fontes do imaginário utópico. (Não faltam exemplos que corroboram essa visão. Limito-me a citar uma frase de Frank B. Wilderson III, em seu Afropessimism: “Tem alguma coisa na comunidade de um campus universitário que faz você se sentir como se nada de catastrófico pudesse acontecer com você lá; como se o mundo real começasse para além dos muros”. E, sob diversos aspectos, talvez comece mesmo...).
Para quem sai de um ambiente caótico, como o da Nápoles descrita por Lenu, a universidade só pode remeter ao paraíso. E, se for preciso se submeter à rígida disciplina monástica para garantir um lugar ao sol nesse pedacinho do céu, que assim seja! “Me apliquei com tanta constância que nenhum professor nunca me deu menos de trinta e, no intervalo de um ano, me tornei uma estudante daquelas consideradas promissoras, cujos sinais respeitosos de cumprimento eram correspondidos com cordialidade”.
Esse domínio das regras, no entanto, nunca é pleno e a maestria exige saber o momento certo de infringi-las, também. Para ser um virtuoso da artificialidade é preciso saber fazer da própria autenticidade um artifício. “Certa manhã a garota de Roma que zombava de mim por causa do meu sotaque me agrediu, gritando comigo na presença de outras estudantes que havia sumido dinheiro de sua bolsa e que ou eu o devolvia imediatamente, ou ela me denunciaria à diretora. Compreendi que não podia reagir com um sorriso conciliador. Dei-lhe uma bofetada violentíssima e a cobri de insultos em dialeto. Todas se assustaram. Eu era uma pessoa tida como alguém que não levava provocações a sério, e minha reação as desorientou. A garota de Roma ficou sem palavras, tamponou o nariz que pingava sangue, uma amiga a acompanhou ao banheiro. Poucas horas depois, as duas vieram me procurar e a que me acusara de ladra pediu desculpas, tinha encontrado o dinheiro. Eu a abracei e disse que suas desculpas me pareciam sinceras – e de fato eu achava isso. Eu havia crescido em um meio que, mesmo se eu errasse em alguma coisa, nunca teria me desculpado”.
Trata-se, via de regra, de um movimento arriscado, um gesto extremo cuja potência depende do contraste. É preciso que a espontaneidade não ofereça nada mais que um vislumbre de uma suposta verdade interior, revelando, de forma igualmente súbita e breve, a marca de Caim. E seu efeito depende precisamente daquele imaginário que se viu refletido no olhar do outro nos primeiros contatos e, depois, foi cuidadosamente borrado pelo artifício. Essa é a condição para que o “exótico” se converta em “ativo”, em “capital social”, em “vantagem competitiva”. Ele deve amedrontar como o movimento abrupto de um tigre em direção às grades de sua jaula num zoológico. Deve produzir um susto, jamais uma tragédia. A tragédia colocaria tudo a perder. Sobretudo porque a essa altura, só resta o gesto, uma caricatura de selvageria. Já não há força capaz de sustentar a tragédia. Quando isso acontece, Lenu já pertence tão pouco ao mundo de Pisa quanto ao mundo de Nápoles. Tem mais que um, menos que dois mundos. Seu lugar é esse não-lugar. E é isso que ela percebe quando fala com, ou visita, a família e se depara, invariavelmente, com o infamiliar.
“As palavras enfezadas de minha mãe: ‘Se conseguir dinheiro, me mande pelo correio; agora quem vai ajudar seus imãos nas tarefas? Eles irão mal na escola por culpa sua. Mas vá, pode ir, quem se importa: sempre soube que você se achava melhor que eu e que todo mundo’. E depois as palavras hipocondríacas de meu pai: ‘Estou sentindo uma dor aqui, vai saber o que é, venha para perto do papai, Lenu, que eu não sei se quando você voltar ainda vai me ver vivo’. E depois as palavras insistentes de meus irmãos: ‘Se a gente lhe fizer uma visita, vamos poder dormir com você, podemos comer com você?’. E depois Pasquale, que me disse: ‘Veja lá aonde te leva todo esse estudo, Lenu. Lembre-se de quem você é e de que lado está’. E depois Carmem, que não conseguia superar a morte da mãe e estava abatida, me fez um sinal de despedida e desandou a chorar. E depois Alfonso, que ficou pasmo e murmurando: ‘Eu sabia que você continuaria estudando’. E depois Antônio, que, em vez de prestar atenção ao que eu dizia e aonde ia, e ao que estava indo fazer, me repetiu várias vezes: ‘Agora estou me sentindo muito bem, Lenu, tudo aquilo passou, era o serviço militar que me fazia mal’. E depois Enzo, que se limitou a me estender a mão e apertá-la tão forte que ficou dolorida por dias. E por fim Ada, que só me fez uma pergunta: ‘Você já contou a Lina, hein, já contou?’, e deu um sorrisinho, e insistiu: ‘Conte, ela vai explodir’”.
E... e... e... Ferrante empilha demandas, cobranças e apelos nesse parágrafo. A familiaridade, para quem logra sair dos limites do bairro, dos laços de vizinhança, da comunidade, ganha contornos hostis ou, no mínimo, ambivalentes. Inveja, ressentimento, expectativa, frustração, tudo se mistura nessa relação com esse um que virou, de repente, outro. Está presente também nessa relação com o familiar aquele descompasso que caracteriza a relação com os estranhos. A paisagem que Lenu habita no imaginário dos “seus” já é tão distinta da realidade quanto aquela que ela habita no imaginário dos “outros”. Nem lá, nem cá. Nem uma coisa, nem outra: uma e outra: desuna.
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Dá pra atribuir o sucesso da tetralogia a inúmeros fatores. À fluidez da prosa, ao domínio da narrativa, aos encantos de uma Nápoles que volta e meia ganha contornos de realismo fantástico em meio ao realismo mais chão, à força dos personagens, muito fáceis de amar e odiar, de julgar e se compadecer. Para mim, o que pega, no entanto, é a maneira como Ferrante toca um universal a partir do que há de mais particular. A maneira como ela evidencia precisamente a forma como, atravessando o plano íntimo do bairro, da família, do casamento, o capitalismo contemporâneo fixa alguns lugares, consolidando velhas hierarquias, cria outros, promovendo o confinamento econômico e simbólico de certos grupos, abre passagens estreitas, que permitem um trânsito regulado de um lado para outro, e, sobretudo, como tomam forma, em meio a isso tudo, esses não-lugares que, hoje, possivelmente constituem um imenso continente em franca expansão.
Quando falo em napolitanismo, hoje e dia, meio sério, meio brincando, é à vida nesses espaços de transição, nesses não-lugares, nesses entremundos que me refiro. E até aí não há nada de novo nessa discussão. Porque o não-lugar é, no fundo, um lugar comum. O napolitanismo, nesse sentido, diz muito mais respeito à forma, à disposição do mobiliário nesse espaço. E isso a Eleninha sabe fazer como poucos.
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É possível que eu volte a esse tema e à tetralogia em breve, até porque acho que esse ano finalmente sai aquele grupo de estudos encruados que eu um pessoalzinho aí tamo ensaiando faz anos. Antes de me despedir, deixo ao sambi… – mentira, só quero lembrar que Lenu é “de humanas”. Tenho a impressão que estudantes de outras áreas do conhecimento não passam pelos mesmos tipos de conflitos e, se passam, talvez não os encarem do mesmo jeito. Como cria de humanas, claro, falo isso com base no dados do ITC, e reconheço isso de coração, com a “dócil e habitual modéstia” que me é própria.
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Tentei manter a compostura aqui, mas confesso que escrever sobre isso mexeu com umas coisas sinistras dentro de mim e me forçou a encarar algumas verdades inconvenientes. Deixei rolar, refleti, sofri um pouquinho, e apaguei. Mas estou preparadíssimo para falar sobre tudo entre amig@s e cervejas.
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Em tempo. Revisei recentemente a tradução que fiz de um texto que saiu faz uns anos na Viewpoint Magazine e, na época, publiquei no Medium, porque achei que todo ferranter deveria ler. Pra quem tiver interesse numa leitura mais, digamos, materialista da tetralogia, acho que vale muito a pena.