Negócios de família
Quando somos confrontados pela difícil escolha entre dois tipos de relação potencialmente abusiva (e quando essa opção nem existe)
Dia desses fui submetido a um tuíte, como acontece com todo mundo que se aventura na linha do tempo, que me fez revisitar uma pira que sempre tive preguiça de desenvolver melhor, pois conduz a lugares muitas vezes sombrios. No fio em questão, breve, porém intenso, a pessoa dava um depoimento pessoal para explicar porque precisava dar certo em São Paulo. Relatava, em termos gerais, uma série de dificuldades enfrentadas para se manter na cidade e dava a entender, nas entrelinhas, que nenhuma delas era insuportável o suficiente quando comparada à possibilidade de ter que voltar para sua cidade de origem, em algum lugar do interior do país, e confrontar a própria família, que o até o receberia de volta, mas não sem antes submetê-la à humilhação daquela frase, ou daquele simples olhar, que diz: eu avisei.
Tempos atrás, na mesma linha do tempo, alguém “lançou a braba”: “O maior relacionamento abusivo da vida é a família, mas vocês não estão prontos para esse debate”. A repercussão que isso causou parecia indicar que, de fato, pouca gente estava preparada mesmo. Por inúmeros motivos. Admitir isso, principalmente para si mesmo, exige, em muitos casos, tanto revisitar determinados traumas quanto lidar com certas culpas. Mesmo entre os mais “desconstruídos”, parece que o imperativo bíblico – “Honra teu pai e tua mãe” – nunca deixa de assombrar o inconsciente, arrastando corrente pelos corredores das nossas memórias.
São poucas – se é que são – as relações familiares que não estão marcadas por essa ambivalência. É compreensível que seja assim, porque, de modo geral, as relações que se revelam mais constitutivas de nossa personalidade, ao longo da vida, nascem nessa zona intermediária, que fica entre o amor e o ódio. É algo que está na natureza de Eros, o agridoce, como diria Anne Carson. Típico de Eros, também, é que grande parte de sua força ele extrai precisamente da ausência. Eros, no grego, Carson nos lembra, denota “necessidade”, “falta”, “desejo pelo que está ausente”. Embora tenhamos mais facilidade para compreender isso quando pensamos no amor romântico, no calor da paixão, essa é, no fundo, a mesma dinâmica que encontramos nas relações familiares, o mesmo joguinho do fort/da. Mais do que isso: é na família que a encontramos primeiro, é lá que a gente aprende a jogar.
Esse joguinho de presença e ausência, essa ideia da distância, da separação como lenha que alimenta o fogo do amor – “Congelo quando presente; quando ausente, quente é meu desejo”, diria Petrarca, citado por Carson – talvez nos ajude a compreender melhor por que, para amar melhor nossos pais e irmãos, muitas vezes, é imprescindível se afastar. Sair de casa, ganhar o mundo, quiçá, construir a própria família. Ou garantir, no mínimo, uma independência relativa, que altere, em alguma medida, a relação de poder estabelecida pela lógica da reciprocidade, que está na base das relações familiares – e, possivelmente, de muita relação amorosa.
O conceito de dádiva, conforme formulado por Marcel Mauss, a partir do estudo antropológico das sociedades (ditas) “arcaicas” da Polinésia, da Melanésia e do noroeste americano, nos fala sobre a lógica que rege o intercâmbio entre grupos de pessoas para as quais a troca equivalente de mercadorias não é o padrão. São sociedades regidas pela lógica da reciprocidade, por meio da qual vínculos de dependência baseados na dádiva – o ato de dar presentes – e, não menos importante, na dívida – a obrigação de retribuí-los. No plano familiar, a menor comunidade que conhecemos, amor, cuidado, proteção, carinho, nutrição, abrigo, tudo isso pode ser encarado como dádiva, como um presente que recebemos de nossos pais e que, como toda dádiva, implica numa dívida. O imperativo bíblico do “honra teu pai e tua mãe”, no limite, existe para nos lembrar dessa dívida. Para nos dizer que temos a obrigação de devolver, de preferência em dobro, todo amor, cuidado, proteção, carinho, nutrição, abrigo que recebemos.
É evidente que, a “precificação” dessas dádivas, e, consequentemente, o cálculo dessa dívida, varia muito de família para família – e de membro para membro de cada família. É essa dificuldade que emerge, via de regra, toda vez que a família resolve “discutir a relação” — ou “acertar as contas”. Há, além disso, um aspecto da dádiva que muitos esquecem de levar de levar em conta, às vezes. A reciprocidade tem um lado menos festivo que esse representado pela troca de presentes. A vingança – a vendeta, o olho por olho, dente por dente, a ideia de retribuir o mal com o mal – é um dos elementos constitutivos dessa mesma lógica. Parafraseando Anna Karenina, podemos dizer que quando o amor sai por uma porta, o ódio entra pela janela. E o risco da transmutação de uma coisa em outra tende a ser maior quando a proximidade excessiva nos impede de alimentar a chama desse amor pela família.
Não é por acaso que, em muitas famílias brasileiras, a filha – e é geralmente uma filha, mesmo, uma mulher, apesar das raras exceções – que não sai de casa, que não casa, é aquela para a qual essa ambivalência da relação amorosa exibe sua cara mais feia. É geralmente quem fica que perde a paciência mais fácil, que bate-boca, que conhece os defeitos, que reconhece as mesquinharias, as pequenas maldades, as manias irritantes dos pais. E é nesses termos que a reciprocidade se estabelece. É dessa pessoa que veremos, muitas vezes, virem as cobranças mais intensas, as demandas mais explícitas, as “verdades” mais duras, tanto em relação aos pais, com os quais ela ficou, com a obrigação de (des)amar de perto, quanto dos irmãos, que se foram, e tiveram a possibilidade de apender a amar melhor de longe.
“I think we have gone through a period when too many children and people have been given to understand “I have a problem, it is the Government's job to cope with it!” or “I have a problem, I will go and get a grant to cope with it!” “I am homeless, the Government must house me!” and so they are casting their problems on society and who is society? There is no such thing! There are individual men and women and there are families and no government can do anything except through people and people look to themselves first”.
Percebam, no entanto, que a questão do grau de independência financeira, seja dos pais, seja dos filhos, altera profundamente essas dinâmicas da reciprocidade. De um lado, estabilidade financeira dos pais, por mais que não garanta necessariamente, tende a pavimentar o caminho para a independência financeira dos filhos (e não precisamos nem ir tão longe para pensar na figura do herdeiro, com a qual tanta gente fantasia hoje em dia: falo de uma estabilidade mínima, capaz de assegurar o básico para a pessoa se alimentar bem, ter acesso a boas escolas, estabelecer relações sociais que possam facilitar uma transição mais suave da lógica da reciprocidade para a lógica das trocas de mercadoria – ou da venda de sua força de trabalho por dinheiro –, enfim). De outro, a independência financeira dos filhos, tende ser uma fonte menos rica de culpa quando os pais gozam de alguma estabilidade financeira na velhice (para pagar um bom plano de saúde, pra recorrer a uma cuidadora, se necessário, ou, tanto melhor, para manter uma dieta equilibrada e praticar exercícios regularmente, num esforço deliberado para prolongar o bem-estar e reduzir os impactos da idade sobre o corpo e a mente). E isso vale, inclusive, para casos extremos, que a gente tem visto cada vez mais em tempos de acirramento dos ânimos em razão de divergências de ordem política, que parecem traduzir, cada vez mais, uma diferença radical entre visões de mundo. O mais fácil cortar relações com a família “fascista” quando a raiva não divide espaço com a pena em nossos corações.
É possível que dê para lidar com isso com uns bons anos de terapia? Lidar com o fato de que, bem, talvez seus pais sejam mesmo pessoas odiáveis? Que a dádiva talvez não tenha sido lá das melhores mesmo e que talvez sua dívida já esteja paga? Tudo leva a crer que sim, que é bem possível. Mas é bem provável também que para isso você precise não apenas de muita dedicação e coragem para se submeter a um processo muitas vezes longo, cansativo e extremamente doloroso, mas também, muito caro — o que nos leva de volta à importância da independência financeira. E à historinha do primeiro parágrafo.
“Vou conversar com Mandetta e tomar a decisão. Cara, você tem que isolar quem você pode. Você quer que eu faça o quê? Eu tenho o poder de pegar cada idoso e levar para um lugar? É a família dele que tem que cuidar dele no primeiro lugar. O povo tem que parar de deixar tudo nas costas do poder público. Aqui não é uma ditadura, é uma democracia”.
Jair Bolsonaro
Para muita gente, fracassar nessa luta pela independência financeira não é uma opção. Para muita gente, voltar pro seio da família, seria o pior dos castigos. Por que, sim, para muita gente, “o maior relacionamento abusivo da vida é a família” e, para escapar dele, infelizmente, a única opção que muita gente encontra, é se submeter a outro tipo de abuso, um abuso que, se não é necessariamente menos cruel, é, no mínimo, mais impessoal. Porque, para muita gente, um trabalho merda, é muito mais tolerável que uma família merda. Inclusive porque é mais fácil chegar em casa, depois do trabalho, e odiar seus chefes, sem um pingo de culpa, do que voltar pra casa dos seus pais e odiá-los debaixo do teto deles.
“Neoliberais e conservadores entendem a família de formas diferentes (...): neoliberais veem um grupo de atores racionais, conservadores, uma instituição sagrada e uma proteção contra o mercado. Mas, para ambos, a família neoliberal, ao privatizar o risco e a dívida, ofereceu uma alternativa tanto às visões dos defensores do New Deal, a de uma família apoiada pela seguridade social, quanto para os novos modelos de parentesco propostos por feministas e defensores dos direitos dos gays e outros grupos”.
É por isso que, quando a gente olha para essa relação entre capitalismo e família, dá para entender que a centralidade da postura “liberal na economia, conservador nos costumes” em certos discursos contemporâneos. Dá para entender por que tornar cada vez mais impiedosa a exploração do trabalho, cortar direitos, desmontar a estrutura de seguridade social do estado e combater ferozmente todo arranjo de relações sociais que fuja minimamente do modelo da família nuclear e, ao mesmo tempo, do arranjo capitalista de troca de mercadoria trabalho por mercadoria dinheiro.
Mas, por supuesto, é óbvio, é claro, é evidente que estou falando aqui de exemplos extremos. É possível que, na maioria dos casos, o equilíbrio, ainda que precário, entre essas duas dimensões, seja o mais comum. E talvez esse seja exatamente o arranjo que corresponde ao imaginário que temos vulgarmente do que seja uma família feliz. Nem sempre as tensões familiares – os momentos de precificação da dádiva e cálculo da dívida – levam, digamos, à austeridade fiscal ou ao calote. Tem muita vida para acontecer entre uma coisa e outra. Só quero chamar atenção aqui para o fato de que seria bom se a gente, enquanto sociedade, conseguisse pensar em maneiras de garantir que, quando isso acontece, existem alternativas entre a submissão total à família abusiva e a submissão incondicional a um regime de trabalho degradante.
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Se tudo der certo, em breve volto a esse assunto com um texto mais caretinha, trazendo um pouco da discussão da Melinda Cooper sobre isso, no Family Values, e uns insights interessantes que encontrei num trecho do They call it love, da Alva Gotby, publicado recentemente no site da Verso, por ocasião do Valentine’s Day, na Inglaterra.