“Quando eu canto as músicas de corno o pessoal ama. Porque ninguém é sofisticado na hora do amor. (...) A alta sociedade é sofrida e castrada, porque convive entre si não por grandes amores, mas por grandes interesses. (...) Essa polidez afasta as pessoas. (...) Atingir um coração sofisticado é impossível, pois o sofisticado só pensa nele mesmo e no medo que ele tem das pessoas”.
Carlos Colla, compositor de “música brega”
Temos, sem dúvida, muito a ganhar com o processo civilizador, mas Freud foi danado quando chamou atenção para o mal-estar que emerge daquilo que a gente perde, ou recalca, nesse sacrifício das pulsões mais primárias em nome de um bem-estar mais comportado —ou para usar a palavra escolhida pelo compositor de música brega, Carlos Colla, em nome de uma satisfação mais “sofisticada”.
De uns tempos para cá, resolvi reviver um interesse que me foi despertado, anos atrás, pelo documentário da cineasta Ana Rieper, Vou rifar meu coração, que reúne histórias – em sua maioria, trágicas, excessivamente passionais e, claro, absurdamente exageradas para quem vê de fora – de brasileiros e brasileiras pobres que encontram na música brega a melhor tradução possível para suas desventuras amorosas. Entre os entrevistados famosos, desfilam na tela nomes como Waldick Soriano, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo e, claro, Amado Batista e Odair José. São nomes que – às vezes a contragosto daqueles que representam o estilo – estão umbilicalmente ligados a esse gênero que ficou conhecido como brega, mas que alguns preferem chamar simplesmente de “música romântica”, no Brasil.
Meu (re)interesse por esse assunto passa por dois caminhos. Ou melhor, três. Vamos lá.
O primeiro deles tem a ver com o tema do qual tenho me ocupado no doutorado, o nacionalismo. A conexão entre uma coisa e outra é marginal, e nada óbvia, pelo menos à primeira vista, mas me deixem tentar esclarecer o que tem se passado nessa cabecinha.
Um dos conceitos que mobilizo na tese, para pensar a assim chamada “questão nacional” é o de comunidade imaginada, tal como formulado por Benedict Anderson. Gosto muito desse conceito, que me parece bastante eficaz para pensarmos o lugar que a nação ocupa tanto no imaginário quanto na política moderna. A centralidade conferida por Anderson à literatura em sua conceituação, no entanto, sempre foi algo que me deixou com uma pulga atrás da orelha sempre que eu tentava pensar o caso brasileiro, um país cuja genealogia do nacional parece diferir radicalmente daquela encontrada nos demais países da América Latina, dos quais o autor se ocupa com mais vagar.
São muitas as diferenças, mas uma delas me parece crucial: o nível de alfabetização vergonhoso da população brasileira até décadas surpreendentemente recentes, quando comparado às demais nações latino-americanas (ou sul-americanas, sobretudo). Muito já se falou sobre o surgimento tardio da primeira universidade em território brasileiro, bem como da maneira como a formação da nossa elite – médica, política e jurídica – se deu basicamente em Portugal, até meados do século XIX. Até 1940, percebam, 56% da população brasileira era analfabeta. Mesmo em 1960, esse número chegava a quase 40%, sem incluir, evidentemente, o analfabetismo funcional, o que torna muito mais difícil de assimilar a ideia de que a imprensa escrita ou a literatura teriam desempenhado um papel tão determinante para a consolidação de um imaginário nacional. Nossa comunidade, sempre desconfiei, foi imaginada sobretudo nas ondas do rádio, mais precisamente, da Rádio Nacional, muito espertamente privilegiada pela máquina de propaganda getulista.
Dos anos 50 em diante, aliás, sobretudo com o surgimento da Bossa Nova, a MPB vai ser – ao lado do futebol, vale dizer, mas isso é assunto para outro momento – o grande veículo de disseminação não só de um imaginário, mas de um certo “projeto nacional”. Quem explora isso com muita perspicácia é o crítico Acauam de Oliveira, em sua brilhante tese de doutorado – O fim da canção: Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. Nesse trabalho, Acauam identifica no movimento Hip-Hop, que emerge nas periferias das grandes cidades lá pro final dos anos 1980, um sintoma da crise desse imaginário, uma fratura dessa comunidade imaginada pela MPB, qu, vejam só, coincide com a falência de um projeto nacional estruturado em torno de uma perspectiva de integração das massas à cidadania mediada pelo trabalho.
A leitura da tese de Acauam, no entanto, me remeteu ao livro do crítico Gustavo Alonso – Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização à brasileira –, que, sob diversos aspectos, corrobora as teses de Acauam, mas por um caminho que podemos chamar de marginal: o da música sertaneja. Um dos méritos do trabalho de Alonso, acredito, é a maneira como ele desafia uma tese muito popular na história do pensamento social brasileiro, a dos “dois brasis” — um do litoral, outro do sertão, um da cidade, outro do campo, ou da metrópole cosmopolita, outro do interiorzão matuto, um moderno, enfim, outro atrasado. Sem cair nessa razão dualista, para citar o conceito popularizado por Chico de Oliveira. Alonso revela, a partir do imaginário sertanejo, uma simbiose de longa data entre o atrasado e o moderno. Uma relação muito mais complexa do que a tese dos dois brasis parece capaz de apreender, na medida em que olhando para ela fica mais fácil sacar de que modo nosso curioso “projeto de país” sempre integrou, de maneira tensa, os dois polos dessa aparente oposição. Arriscando uma hipótese aqui, acredito que a leitura paralela das duas obras nos permita compreender melhor a explosão disso que ficou conhecido como sertanejo universitário, muito recentemente, e sua penetração nas periferias dos centros urbanos. Desse ponto de vista, arrisco, ele poderia ser visto não apenas como sintoma de uma crise, uma fratura ou, no mínimo, uma mutação de um certo “projeto nacional”. Talvez o que esteja em jogo hoje, quero dizer, não seja exatamente uma vitória do atrasado sobre o moderno – em economês, a da reprimarização da economia num cenário de desindustrialização – mas uma mudança na relação de forças entre esses dois polos.
Essa música doa dupla US Agroboy me parece sintetizar bem essa mudança na relação entre o campo e a indústria, particularmente neste trecho: “Hoje o meu cordão de ouro vale uma boiada / Tem avião pra jogar veneno nas pragas /E dez colheitadeiras já tudo quitada / Segunda à sexta é safra, final de semana é farra”
Coloquemos da seguinte forma: é como se, no passado, o campo “atrasado” servisse à indústria moderna, que fixava o horizonte do nosso desenvolvimento nacional; hoje, é como se a indústria – e todo complexo que envolve o desenvolvimento, a aplicação de tecnologias, a automação, etc. – fosse colocada a serviço da do campo – ou desse agro que, tal como insiste a propaganda, se fez tech. Dizer isso não significa, necessariamente, dizer que se abriu mão de um projeto país. Só que esse projeto já não contempla mais o horizonte da integração, da inclusão. É um projeto que, de certa forma, abraça a fratura sintomática que o Hip-Hop já anunciava nos anos 90. Um projeto desintegralista. Com trocadilho.
O segundo caminho pelo qual passa meu interesse no sertanejo, e no brega, com o qual muitas vezes ele se confunde, passa por algumas reflexões sobre o lugar da clínica psicanalítica no Brasil. Trata-se de um interesse mais recente, ainda carente de uma elaboração mais... sofisticada. Vou tentar apresentar alguns argumentos nesse sentido, mas conto com a compressão de que me lê aqui por se tratar de uma especulação para lá de insipiente.
Com raras e louváveis exceções, podemos dizer com alguma segurança que a clínica psicanalítica no Brasil se configurou, sobretudo, como uma prática voltada para a classe média, especialmente a classe média alta. Isso parece se aplicar tanto a analistas quanto a analisantes, na medida em que tanto a formação em psicanálise quanto a análise semanal com um psicanalista sempre foram financeiramente inacessíveis para a imensa maioria da população do país. Talvez possamos dizer que, via de regra, a psicanálise se configurou por aqui como uma atividade de gente “sofisticada”. Não por acaso, para muita gente, deitar-se semanalmente num divã e fazer suas livre associações é, até hoje, é, se não um luxo, parte de estilo de vida, muito mais do que simples “terapia”.
Esse quadro, é verdade, tem mudado nos últimos anos. E essa transformação, quero argumentar, parece ter a ver precisamente com a falência desse projeto nacional de integração à cidadania por meio do trabalho, que mencionei anteriormente. Difícil precisar, em números, o caráter dessa mudança. De modo geral, aliás, é muito difícil encontrar números quando se trata de investigar a clínica psicanalítica, seja no Brasil, seja no mundo. Em geral, quem se põe a pensar sobre esse tema precisa se fiar muito mais em relatos esparsos, nem sempre muito claros, colhidos aqui e ali, no trânsito pelo, digamos assim, “meio psicanalítico” (ele mesmo pra lá de complexo, em sua variedade de escolas e correntes). Meu “método”, aqui, não é muito diferente. Nos últimos três anos, algumas inquietações têm aparecido com muita frequência em conversas que tenho tido com colegas da psicanálise (em sua maioria, gente do campo lacaniano, talvez seja bom esclarecer). Uma delas tem a ver justamente com a mudança no perfil das formações, com mais entrada de pessoas oriundas, originalmente, de classes mais baixas, que ascenderam na vida, tiveram acesso à universidade e, de repente, passaram a ver na carreira psicanalítica uma possibilidade. Para muitas delas, importa dizer, uma possibilidade de se encaixar no mercado de trabalho mesmo. Muitas dessas pessoas passaram a se confrontar com dificuldades de todo tipo, tanto em sua relação com o ambiente das escolas de formação – muitas vezes descritos como fechados, herméticos ou elitizados – quanto no esforço de se afirmar nesse – digamos a famigerada palavra – mercado. Uma parte desse contingente de psicanalistas “emergentes”, por assim dizer, se viu obrigado, eventualmente, a reduzir o valor de seus atendimentos. A oferta maior de psicanalistas, a redução potencial do preço das consultas e – não menos importante – a popularização do atendimento online no contexto pós-Covid 19, parece ter oferecido, para uma pequena parcela da população economicamente ascendente, uma oportunidade de frequentar o divã.
E quando falo de população economicamente ascendente, reparem, falo de pessoas que, muitas vezes, só se colocaram no mercado em regimes precarizados, justamente na esteira da falência do projeto de integração cidadã por meio do trabalho e da flexibilização (a.k.a. destruição) das leis trabalhistas no país. Gente que, hoje, tem trabalho, mas não tem direitos. O que os aproxima, curiosamente, da posição de muitos psicanalistas em começo de carreira. É que, de certa forma, na prática, o que distancia um profissional liberal de um trabalhador precarizado no mundo de hoje é a estabilidade financeira que cada um deles é capaz de conquistar a partir de sua prática profissional.
Essa aparente mudança, sutil ainda, mas significativa, no perfil de analistas e analisantes tem me levado a pensar no que isso representa para a maneira como o imaginário social aparece na clínica. Essa é uma preocupação que surge, com frequência, nas discussões sobre a questão racial, sobre a possibilidade ou não de se falar em um “inconsciente negro”, para usar a expressão popularizada (ainda que posteriormente rejeitada, em grande medida) por Neusa Santos Souza. Muito se tem discutido, nos meios psicanalíticos, sobre a necessidade de apurar nossa capacidade de escuta para lidar com casos que exigem um repertório cultural muitas vezes distante, estranho, quase alienígena para muitos e muitas psicanalistas, em geral, brancos e brancas, que cresceram com os pés fincados na classe média (não raro, alta) e nos grandes centros urbanos. Embora não apareça de forma tão evidente quanto na discussão racial, a questão da diferença de classe é um elemento que também dá o que pensar nessa relação. Um desafio que, me parece, tem a ver com a necessidade de compreender melhor como chegam ao divã tanto a “classe inadequada” - essa geração nascida na classe média, que cresceu com a convicção de que subir na vida era questão de tempo, e hoje se vê diante de um mercado de trabalho onde as vagas são limitadas e direitos são privilégio — quanto os “periféricos” — aqueles que vieram das classes mais baixas, melhoraram de vida agarrando as parcas oportunidades de estudo e trabalho que tiveram e, agora, passam a ter acesso a um mundo de possibilidades, que inclui o divã, do qual sempre estiveram distantes, mas agora estão ávidos para poder desfrutar dele.
Reconectando esse longo preâmbulo ao começo desta discussão: tenho me perguntado muito em que medida uma psicanálise que se pretenda mais “democrática”, mais “acessível”, mais “inclusiva” não vai exigir uma abordagem menos “erudita” — e, curiosamente, mais sofisticada — das “formações do inconsciente”. Digo, em que medida os estudos sobre a tragédia grega, por exemplo, não deveriam coexistir, sei lá, com uma consideração do componente trágico presente no cancioneiro brega, nas lamentações (ou, mais recentemente, nas exaltações) do sertanejo? Talvez isso soe como um “chiste" para alguns, mas arrisco a dizer que se trata de (mais) um convite para um “retorno a Freud”. É que embora tenha recorrido muito à tragédia e a tantas outras referências da cultura erudita em sua obra, o “pai da psicanálise” sempre esteve atento à importância do “popular” em sua investigação do inconsciente, desde as interpretações dos sonhos até a importância atribuída por ele aos chamados ditos populares. O inconsciente, enfim, é bem eclético na eleição de seus significantes. Não raro, na falta de Sófocles, vai de Odair José pra “tirar você desse lugar” (ou manter, depende).
Por fim, o terceiro caminho, este bem mais simplório, que me fez retornar ao brega tem a ver diretamente a fala do Carlos Colla, no começo do texto, com a maneira como, às vezes, o excesso de sofisticação é precisamente o que nos impede de dizer a verdade sobre nosso desejo. Falo de quando a sofisticação nos faz hesitar, evitar, esconder, calar. De quando ela nos envergonha, nos paralisa diante do temor de... soar muito brega. Porque, no limite, tendo a acreditar que todo amor, quando vai longe o suficiente, chafurda na breguice (todas as cartas de amor são ridículas e tal, já dizia certa pessoa). E essa breguice, suspeito, se impõe, sobretudo, quando estamos “nas garras da paixão”. É possível que, quando recordamos de um amor “superado”, ou melhor elaborado, a sofisticação das letras de Caetano ou Chico façam um trabalho mais eficaz. No ápice da dor de cotovelo, no entanto, tenho cá minhas dúvidas: tendo a achar, confesso, que isso explica o sucesso de Evidências...