Passei a tarde revisando uma tradução que fiz de um texto da teórica sul-africana Lesley Green para o Volume 2 do Mil Nomes de Gaia, que deve sair pela Machado nos próximos meses, e me peguei refletindo mais uma vez sobre a “cosmologia do cimento”. Foi nesse texto que tive meu primeiro contato com uma elaboração filosófica que deu contornos universais a algo que, num recorte local, para não dizer pessoal, sempre me tocou.
Falo da relação do brasileiro com o concreto. Um dia, andando a esmo com uma amiga pelas ruas da Lapa, em São Paulo, chamei a atenção dela para maneira como as casas da classe média baixa – falo das que ainda não foram substituídas por prédios, mas parecem estar à espera desse grande momento – se caracterizavam por uma espécie de aversão ao verde. Como se todo espaço disponível nos terrenos – não raro, muito exíguos – precisassem ser ocupados pela construção ou, pura e simplesmente, pelo concreto.
Especulando selvagemente, comecei a falar de como eu achava que aquilo parecia ter algo a dizer sobre a relação tensa do brasileiro urbano com sua herança rural – às vezes, uma herança quase arquetípica, pois já não tinha a ver com o gesto de migração do interior para os grandes centros: bastava ser filho ou neto desse gesto. Era obra dos herdeiros, enfim, do êxodo rural.
Falei sobre como o cimento estava associado, no imaginário de muita gente – o exemplo mais próximo era o do meu pai, mas isso se aplicava também a pais de amigos, a antigos vizinhos, a muita gente, enfim – ao progresso, à segurança, à limpeza. Era como se concretar – rebocar uma parede, botar um piso, erguer um muro, fossem maneiras de comunicar ao mundo uma melhoria de vida. Algo que talvez esteja implícito, inclusive, na famosa frase do “quando cheguei aqui, era tudo mato”.
O concreto é o antimato, na cultura brasileira. E sua presença não se limita aos grandes centros urbanos, mas se infiltra no sertão, na floresta, no semiárido, na zona da mata mineira. É como se antes mesmo da modernidade chegar – mesmo onde ela nunca chega –, o cimento chegasse primeiro, cumprindo o papel de de arauto (da tragédia).
Quem já viajou pelo interior de Minas Gerais sabe o estrago que ele fez no cenário bucólico que povoa ainda hoje o imaginário que muita gente tem do estado. Tirando as cidades histórias, que resistem como testemunhos forçados de um passado que se distancia cada vez mais da história para viver da nostalgia, o que mais a gente vê é a proliferação do concreto. Casas quadradas, muitas delas sem reboco, outras, pior ainda, cobertas de azulejos, todas amontoadas em centros comerciais que parecem crescer de modo caótico, disputando o espaço e a atenção de quem passa – vejam só, que ironia – feito erva-daninha, feito mato. O bucólico, nesses lugares, deu lugar à pobreza, mas uma pobreza cada vez mais homogênea esteticamente: unida em seu arremedo de modernidade. Porque a modernidade, para a maioria das pessoas, via de regra se estabelece a partir de um pacto sinistro: em todo lugar onde há pobreza, a modernidade chega com promessas e termina entregando miséria. Em vez de uma promessa concretizada, temos a miséria concretada. Uma miséria cada vez mais inflexível, mais difícil de manejar. Miséria ortogonal. Quadrada, dura, feia e fria.
Para Lesley Green, o cimento talvez seja “o principal artefato da modernidade”. É uma substância que “exemplifica a crença em um extraordinário poder humano para manter as forças terrestres à distância”, substancia milagrosa “imune a todos os estados da matéria e todas as questões de estado” – de guerras a revoluções:
o cimento é uma substância mágica em uma cosmologia difundida na modernidade: a de que a engenharia pode e vai encontrar uma forma de manter a água ou o lixo nuclear fora dos ciclos hidrológicos e dos processos tectônicos, e que basta aos estados “regular” seu uso. A crença no poder do cimento confere aos humanos o poder de decretar sobre a terra a transformação do líquido em sólido; a separação entre economia e ecologia; entre a atividade humana e os sistemas ecológicos e planetários. Fora do espaço e fora do tempo, acredita-se que o cimento é imune ao movimento tectônico e eternamente impermeável à osmose. O cimento, como tal, representa o excepcionalismo humano: a autoimagem dos Modernos como desnaturados; desmaterializados; separados do próprio planeta.
Essa conclusão, que emerge no contexto das descobertas e grandes reservas de gás de xisto na África do Sul, e das promessas de progresso, liberdade e riqueza que elas supostamente traziam, é corroborada pela análise materialista do arquiteto Sérgio Ferro, quando ele discute o surgimento do concreto armado na construção civil e suas relações com mudanças importante no mundo do trabalho.
Em um artigo que tem como título O concreto como arma, ele afirma: “Os historiadores da arquitetura, praticamente todos, apontam a emergência súbita do novo material posto como fundamento técnico do modernismo”. No artigo em questão, o arquiteto evidencia que essa emergência não foi assim tão súbita. Que a invenção e o aprimoramento do concreto – sobretudo o concreto armado, combinado com o ferro – para uso na construção civil foi uma forma que o capital encontrou para lidar com a ameaça representada pelo “sindicalismo de ofício”, caso dos trabalhadores da construção civil – carpinteiros, marceneiros, pintores e pedreiros –, que no fim do século XIX constituía “a vanguarda do sindicalismo anarquista” na França. As primeiras estruturas – ou “ossaturas” – de ferro nasceram como resposta a uma greve de carpinteiros. O uso do ferro, de repente, colocava os mecânicos na jogada e diminuía o poder de negociação dos grevistas. Era um primeiro passo. Aos poucos, a uso do concreto iria desfazer a “cooperação simples entre os trabalhadores que ergueram os edifícios do gótico primitivo e passar à manufatura exploradora do Renascimento a separação do desenho com relação ao canteiro”, estabelecendo uma distância estratégica, do ponto de vista do capital, entre o trabalho intelectual do arquiteto e o trabalho manual do pedreiro. “Os novos materiais”, ele explica, “desarmam os operários ao tomar o lugar dos materiais que fundamentam ofícios ainda alicerçados no saber-fazer tradicional”.
A produção manufatureira serial [orgânica] da construção tradicional (produção essencialmente cumulativa no próprio canteiro de obras) é superada, na construção metálica de porte, pela produção manufatureira heterogênea (produção essencialmente baseada na pré-fabricação em usinas), que, do ponto de vista da divisão do trabalho, pressupõe concentração da prescrição detalhada no topo do comando: “a torre [Eiffel] aparece, antes de tudo, como o triunfo da arte [sic] dos engenheiros” [RENAULT, Emmanuel. L’expérience de l’injustice: reconnaissance et clinique de l'injustice. Paris: La Découverte, 2004]. Em geral, essa passagem provoca aumento do mais-valor relativo e, portanto, redução salarial. A redução é agravada pelo sentimento de injustiça social gerado com o súbito desprezo pelo saber e pelo saber-fazer dos trabalhadores do metal: na montagem da torre, foram em grande parte substituídos por... carpinteiros! O cúmulo para o monumento do triunfo da construção em ferro! “[O]s valores vinculados à profissão tornam-se impraticáveis devido às modalidades da organização do trabalho” [Idem].
A relação da modernidade com o concreto não será, portanto, meramente estética. “A arquitetura do modernismo”, argumenta o arquiteto, “recobrirá de aura a guinada tática da exploração econômica”.
A nova plástica, diferente superficialmente da devida aos materiais e ofícios em desgraça, celebrará seu sórdido fundamento. Declara pecaminosa a linguagem dos expulsos. Impõe, no início, a mortalha branca e higiênica sob a qual apaga o trabalho agora mais desqualificado (inclusive o requerido pelo uso escondido do concreto), em nome da ‘pureza’ e da ‘razão’, e diz ser crime o ornamento, a arte popular por excelência, segundo William Morris.
Trata-se, para Sérgio Ferro, de um exemplo daquilo que Francisco de Oliveira chamava de “hegemonia às avessas”, quando o discurso da profissão coloca a “questão social” como meta, mas cujo fundamento avança (regride?) no sentido inverso: “Aos operários que degrada objetivamente, o modernismo promete recompensa: a devolução, com juros do que está sendo retirado deles… algum dia”.
A curva, no mundo do concreto armado, é sempre uma exceção. Sua vocação é ortogonal. O mundo do concreto é mundo mais quadrado. “A ortogonalidade generalizada evita gastar tempo com adaptações complexas que seriam necessárias se as formas a construir fossem irregulares ou inabituais”, pontua Sérgio Ferro.
Esse, infelizmente, parece ser o sentido da modernização, no Brasil. Não é por acaso que Brasília, a despeito das belas curvas traçadas por Niemeyer, tenha partido de uma cruz, como já gostava, antes de Lúcio Costa, Le Corbusier:
Este signo +, isto é, uma reta cortando outra reta fazendo quatro ângulos retos, este signo é o gesto mesmo da consciência humana, o signo que desenhamos intuitivamente, gráfico simbólico do espírito humano, introdutor de ordem.
[LE CORBUSIER, Quand les cathédrales étaient blanches, [1937] 1965, p. 61.]
Eis aí a cosmologia do cimento, essa ortogonalidade introdutora da ordem, “signo do espírito”, na visão de Le Corbusier, “autoimagem dos modernos como desnaturados”, “separados do próprio planeta”, como diria Lesley Green. Se existe um aspecto da modernidade que o Brasil conseguiu “antropofagizar”, eu diria que foi o cimento. Se bobear, era só o que tinha de concreto na promessa moderna mesmo.