O que é há de mais moderno do mundo do trabalho
O trabalho escravo não é uma anomalia do capitalismo: é parte dele
Lembro que no auge das discussões sobre a retorna trabalhista, Michel Temer deu algumas entrevistas nas quais citou o Paraguai como um exemplo de “modernização” das leis trabalhistas (e tributárias). Na época, entre 2016 e 2017, estava acontecendo um forte movimento de migração de empresas do Brasil para o Paraguai. “Atraídas por isenção de impostos, encargos trabalhistas baixos, acesso sem tarifas ao mercado brasileiro e um ambiente favorável aos negócios”, explicava uma reportagem da revista Exame, em 2017, “70 fábricas se instalaram no Paraguai somente nos últimos três anos, nos segmentos de confecções, têxteis, plásticos, peças e partes para automóveis”.
Dentre os motivos que contribuíam para o aumento da competitividade paraguaia estavam as conquistas trabalhistas dos trabalhadores asiáticos, sobretudo chineses, que tinham tornado a mão-de-obra mais cara por lá e levado os empresários a buscar territórios mais propícios para a extração de mais-valor. Se não podia ser uma China, o Paraguai podia muito bem ser um México. “O Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) tem o mesmo papel, para o México, que o Mercosul para o Paraguai”, esclarecia a matéria da Exame, “transformar o país em um bolsão de produção a preços mais baixos, com livre acesso ao mercado do gigante vizinho”.
Como apontava uma matéria da Sputnik sobre o mesmo assunto:
“Uma diferença significativa entre os dois países [Brasil e Paraguai] são os direitos trabalhistas. Enquanto um brasileiro tem direito a 30 dias de férias por ano, as férias dos paraguaios dependem de quanto tempo têm de carteira assinada. Até o quinto ano no emprego, são 12 dias de descanso remunerado por ano. Só após uma década na mesma empresa é que o funcionário passa a ter direito a 30 dias de férias por ano. A jornada de trabalho no Paraguai também é diferente: são 48 horas semanais contra 44 horas no Brasil”.
Já naquela época parecia óbvio, quando a gente acompanhava as discussões em torno da reforma trabalhista, que o sucesso da “modernização” consistia em reduzir direitos trabalhistas ao máximo, se possível até aproximá-los cada vez mais daqueles que vigoravam nos primórdios da revolução industrial. A “ponte para o futuro” nos levava, curiosamente, ao passado. Para países como o Brasil, ou o Paraguai, que Temer via como exemplo a ser seguido, a superexploração do trabalho surgia como a única alternativa para garantir a competitividade no mercado mundial. A redução dos direitos trabalhistas ao nível mais próximo possível de zero era uma forma de promover, por assim dizer, uma rodada de acumulação primitiva que, talvez, sei lá, quem sabe, um dia, nos permitisse pensar no desenvolvimento tecnológico como estratégia competitiva.
Esse movimento de “modernização” às avessas teria continuidade no governo Bolsonaro, sob a batuta do ministro Paulo Guedes. Diante da alternativa infernal que tinham diante de si – mais direitos com menos trabalho, ou mais trabalho com menos direitos – trabalhadores – e desempregados, e desalentados, e desiludidos – parecem ter “optado” pela segunda opção. A precarização deixou de ser um risco para se tornar o padrão. Vimos o crescimento exponencial dos trabalhadores de aplicativo, entregadores, motoristas, e uma redução nas taxas de desemprego sustentada, em grande parte, pelo aumento da “informalidade”. Mas uma informalidade “moderníssima”, uma informalidade “tecnológica”. O Paraguai deixou de ser citado como exemplo. Mas nem precisava. Também lá, dizia a reportagem de Exame em 2017, a redução do desemprego caminhava pari passu com o aumento da “informalidade”: “Embora o desemprego seja de apenas 6%, cerca de dois terços dos empregados ainda trabalham sem carteira assinada. Os salários da mão-de-obra informal são em média pouco mais da metade dos trabalhadores contratados”.
Se desenterro aqui os esqueletos do governo Temer, em pleno 2023, é porque o caso da vinícolas gaúchas é só mais um exemplo do que acontece quando essa ideia de “modernização” é levada ao extremo. Em 2017, justificando a opção pelo Paraguai, empresários brasileiros “desabafaram”: “No Brasil, entendemos que o desenvolvimento das classes mais baixas deve ser por programas sociais, e não por geração de emprego”, argumentou Carlos Tilkian, então presidente da Estrela, que tinha escolhido instalar fábricas no país vizinho. “O atual presidente do Paraguai é um empresário. Ele entende a importância e a valorização de um emprego, diferentemente do que ocorre no Brasil.”
Esse “desabafo” de 2017 lembra muito a nota divulgada pelo Centro da Indústria e Comércio de Bento Gonçalves em defesa das vinícolas gaúchas, que andavam recorrendo ao trabalho escravo para “ganhar competitividade”. “Há uma larga parcela da população”, diz a nota, “com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nata tem de salutar para a sociedade”.
O que o “desabafo” de 2017 tem em comum com a nota de 2023 é ideia obscena, agora defendida despudoradamente, à vista de todos, de que programas como o Bolsa Família têm que acabar porque atrapalham a vida das empresas que precisam da superexploração do trabalho para se manterem competitivas. A ideia é de que a população deve passar necessidade, sim, deve, se possível, passar fome, para que o salário mais miserável e as condições de trabalho mais abjetas se tornem, magicamente, “aceitáveis”.
Não discordo totalmente de algumas análises que viram nesse episódio das vinícolas mais um vestígio da presença difusa de elementos nazifascistas no discurso sobre a (anti)ética do trabalho que circula em diversos setores da sociedade brasileira. Acredito, no entanto, que é importante não perder de vista uma dimensão estrutural, que tem a ver com o momento atual do capitalismo no mundo e com o lugar dos países periféricos, como o Brasil, nesse contexto. É preciso não perder de vista, sobretudo, que no arranjo capitalista contemporâneo (aliás, quando é que não foi assim?) a ilegalidade não é uma anomalia, como muitos gostam de apresentá-la quando escândalos como esse vêm à tona. Ela faz parte do jogo. Ela entra na conta. Ele desempenha um papel. Mais central do que a gente gosta de pensar, se bobear.