Notícias divulgadas em diversos canais, essa semana, dão conta de que o jovem deputado mineiro, Nikolas Ferreira, viu seu número de seguidores crescer nas redes sociais em razão do episódio polêmico, protagonizado por ele, no Dia Internacional da Mulher, vestindo uma peruca feminina para estimular a cisão entre as militâncias feminista e LGBTQIA+ e mobilizar o “pânico trans” junto dos segmentos mais conservadores do eleitorado brasileiro, que, cada vez mais parecido com o norte-americano, parece já ter elegido esse grupo pra ser o inimigo da vez, a besta do apocalipse que estaria aí para “corromper nossas criancinhas”.
Mais do que analisar a forma desse discurso, que além de já bastante conhecida é, também, muito simplista, como costuma ser o caso de todo pânico moral, acho interessante atentar para sua eficácia, que, ao que tudo indica, só aumenta. Talvez seja o desespero, diante dessa eficácia cada vez mais comprovada, que esteja levando muitos atores à esquerda do espectro político a encampar, à sua maneira, esse pânico moral, muitas vezes se equilibrando, mal e porcamente, em argumentos formulados no âmbito do feminismo radical. Em comum com o discurso conspiratório da direita, muitas vezes, o discurso temeroso da esquerda encontra na simplificação um aliado: está ali também a mobilização de exemplos extremos, potencialmente chocantes, que não visam problematizar, mas sensacionalizar, deixando tudo no jeito pra “viralizar” nas redes sociais.
Meu problema com essa estratégia é o mesmo com o qual me deparei quando estudava o populismo como um caminho possível para as organizações de esquerda: não dá para entrar nessa sem acabar sujando tanto as mãos a ponto de colocar em xeque o sentido mesmo do que ainda pode significar ser “de esquerda”.
Para além desse debate, no entanto, há algo que me preocupa mais nessa ascensão meteórica de Nikolas como promessa da direita brasileira. Não só por conta daquilo que, em sua relação com as redes sociais, ele remete ao bolsonarismo. Mas porque não me parece que, a despeito da temporada no inferno que foi o mandato de Bolsonaro, nós, que nos colocamos mais à esquerda, tenhamos encontrado um jeito de lidar democraticamente com o apelo popular que essas figuras exercem sobre uma parcela cada vez mais crescente da população brasileira.
Lembro que, há mais de 20 anos, quando a Igreja Universal e a TV Record começavam a despontar no horizonte como ameaça, ainda que incipiente, ao faturamento da Globo, muitas matérias sobre a igreja pipocaram em diversos veículos, impressos e televisivos. Dentre as muitas coisas que li sobre o assunto, uma historinha me marcou profundamente. Não lembro onde li, nem exatamente quando, sequer se era verdade (convenhamos, a grande novidade da fake news está no nome, a coisa vem de longe), só sei que a imagem bateu forte demais para ser esquecida. A matéria dizia que, dentre as estratégias utilizadas pelos pastores da Universal, estava a de manter as janelas dos templos fechadas durante a maior parte do culto, criando deliberadamente um mal-estar entre os fiéis para, só no ápice do evento, no momento mais intenso da pregação, da oração, da benção, sei lá, abri-las, provocando uma sensação generalizada de alívio, como se o Espírito Santo em pessoa tivesse acabado de adentrar ao recinto.
Falo disso porque, a sensação que eu tenho desde janeiro, com muita frequência, é de que alguém abriu de repente a janela. O alívio que muitos de nós, eleitores de Lula, estamos experimentando, é real. Mas, infelizmente, só pode ser compreendido no contraste com o sufoco deliberado ao qual fomos submetidos nos últimos quatro anos. Não dá para confundir essa brisa com uma intervenção divina.
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A cena protagonizada por Nikolas, essa semana, trouxe à tona outra imagem que virou lugar comum nesses quatro anos de bolsonarismo: a da “cortina de fumaça”. Muita gente viu na palhaçada do deputado um jeito de ocupar o noticiário e desviar a atenção da opinião pública do escândalo das “joias do coroa”. Mais uma vez, essa teoria atribui ao bolsonarismo um poder quase sobrenatural de planejar e executar os planos mais perfeitos para manipular a atenção da mídia e pautar a discussão nas redes. Nada me tira da cabeça, entretanto, que pra fincar pé nessa tese é preciso não só superestimar os acertos do bolsonarismo, como também ignorar solenemente seus erros; ou, pior, o fato de que às vezes, é tudo uma questão de tentativa e erro – um luxo, aliás, que, na política, só a falta de escrúpulos é capaz de oferecer.
Curiosa ou lamentavelmente, grande parte da esquerda que votou em Lula na última eleição parece depositar, nos dois casos, toda esperança naquela figura que, nos últimos anos, talvez tenha se tornado mais importante da república. Falo dele, claro, o que vigia e pune, o Xandão.
Não só ele, claro, mas o STF, de forma geral. É triste esse capítulo da história brasileira, em que o Supremo Tribunal parece ter virado, definitivamente, a última instância na luta contra o fascismo. Porque, sim, não são poucos os olhares que se voltam para ele hoje, na ânsia de que os direitos políticos de Bolsonaro – e, se possível, da família inteira – sejam cassados e ele deixe ser esse espectro que ronda nossa democracia. E é cada vez maior, também, o número de olhares pedintes que suplicam destino semelhante para Nikolas.
Não me entendam mal. Do conforto do meu sofá, faço coro com os desesperados e imploro: vigiai e puni! Mas não consigo deixar de ver nessa postura o sintoma do fracasso retumbante da política de esquerda no Brasil. Se nos próximos anos formos incapazes de nos organizar minimamente para compreender (1) o apelo da extrema-direita junto às classes populares, (2) as bases sociais e econômica que sustentam essa adesão afetiva dessas mesmas classes ao discurso da extrema-direita, e (3) encontrar nomes com potencial eleitoral suficiente para preencher o vazio que Lula vai deixar quando, com mais de 80 anos, não puder concorrer à reeleição, vai ficar bem difícil confiar na solidez das instituições para conter o potencial de destruição representado por um possível retorno triunfal da extrema-direita ao poder.
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E, avançando por aí, chegamos à parte pentelha do texto, na qual vou questionar dois caminhos que, nessa arquitetura de arestas da esquerda, volta e meia tomam conta das redes. Não acredito que se aferrar cada vez mais a certos pressupostos político-ideológicos, que na armadilha do amor sem escalas sempre ganham contornos de panaceia, seja a melhor alternativa para lidar com essa ameaça. Não acho que é hora de disputar se a única saída é recompor a classe operária para acirrar a luta de classes, abandonando pautas supostamente minoritárias, que dissolveriam a hipotética unidade da luta; mas tampouco acredito na eficácia de uma composição dessas lutas minoritárias que não leve em conta os aspectos econômicos que sociais que as atravessam transversalmente. Sem levar em conta, por exemplo, que o combate ao patriarcado, à homofobia, ao feminicídio, fica mais difícil num cenário em que a família se torna o último refúgio para pessoas que não encontram meios de vender sua força de trabalho e conquistar sua independência num mundo de oportunidades cada vez mais escassas. Sem considerar, por exemplo, que as igrejas evangélicas acolhem mais negros, hoje, que os terreiros de umbanda ou candomblé, vai ser difícil virar o jogo entre evangélicos.
E, sim, sim, eu sei que existe toda uma história de perseguição às religiões afro-brasileiras, que andou pari passu com as políticas de branqueamento, fenotípico e simbólico, da população negra no Brasil. Mas hoje a preferência dessa parcela da população pelas religiões neopentecostais parece ser um fato (clica aqui e escuta esse episódio do Projeto Querino, vai, faz isso por você mesmo). E dizer que isso culpa da ignorância, foi mal, é burrice.
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Enfim, exemplos de como questões de economia e reprodução social atravessam essas lutas ditas minoritárias não faltam. Empilhá-los, aqui, seria só repetitivo. E acho que já falei disso melhor em outro lugar, também.
De resto, acredito que “a gente” – esse “a gente” que se vê como de esquerda, sobretudo nesse universo cinzento da classe média, que no fundo briga, por mais dura que ande a vida, mais com os conceitos do que com os boletos – fala demais porque não tem muita noção do que fazer, de por onde começar, quando pensa em agir, em efetivamente fazer política.
A gente fala mais para se convencer, muitas vezes, do que para convencer os outros. Para organizar, mais do que movimentos ou partidos, as próprias ideias. Apaziguar a própria angústia e, com sorte, não enlouquecer. Parafraseando a bell hooks, às vezes a gente chega à teoria porque está machucado, desesperado para compreender o mundo ao redor e o que acontece dentro da gente – procurando, enfim, um jeito de aliviar uma dor.
E isso tudo é importante, tem seu lugar. Só não dá para achar que a teoria - ou o Supremo - vai nos salvar de todos os perigos. Até porque, como disse o outro lá, “viver é muito perigoso”.