Tenho dúvidas sérias quanto ao papel da literatura e da imprensa brasileira na construção da nossa comunidade imaginada e desconfio — sem muito fundamento, confesso, mas desconfio — que esse é um motivos que faz o Benedict Anderson evitar o Brasil no Comunidades Imaginadas. Minha hipótese — mambembe, porém persitente — é que a música e o rádio cumpriram muito melhor esse papel — e acho que a tese do Acauam Oliveira sobre os Racionais aponta caminhos pra pensar isso.
Comentei isso no tuíter e rolaram uns comentários bacanas. Em dois deles, o José Murilo de Carvalho foi citado. O primeiro livro mencionado foi o A Formação das Almas. O comentário destacava a importância que o historiador conferia à simbologia construída ainda no império — e, em grande medida, retomada no começo da república — na (tentativa de) construção de uma identidade nacional. Respondi que conhecia o livro e a tese, mas que achava que ela, de certo modo, falava de uma tentativa que talvez não tenha sido das mais bem-sucedidas. Eu trouxe pra conversa dois outros artigos do mesmo José Murilo. No mais relevante pra discussão, que ele discute a importância da unidade ideológica do “mandarinato” colonial - os filhos da elite que, na inexistência de universidades por aqui, recebiam todos a mesma educação em Coimbra - e da aliança entre esse mesmo grupo de burocratas, cuja ênfase sempre esteve mais na administração do estado do que na consolidação de um sentimento nacional, e a elite ruralista, o “coronelato” colonial, muito em função do esforço conjunto dessas duas classes, por assim dizer, para conter as revoltas populares que eclodiram, sobretudo, no período entre o fim do império e os primeiros anos da república (e mesmo pouco antes, em meio dos receio disseminado entre as classes proprietárias e escravocratas frente aos desdobramentos da revolução haitiana). Trata-se, portanto, como o próprio JMC indica, de um processo que diz respeito à consolidação do estado.
Na história do estado-nação moderno, não são raros em que a consolidação de cada um desse polos se dê em momentos distintos. É possível que em grande parte dos casos, estado tenha vindo primeiro e a nação só depois; mas via de regra isso se deu num espaço de tempo relativamente curto, com a nação emergindo para lidar precisamente com as crises de legitimidade do poder estatal. No caso do Brasil, a impressão que eu tenho, e acredito que o texto do JMC corrobora isso, é de que o estado se virou bem sem a nação, se impondo pela força à medida em que as resistências foram aparecendo.
Pelo menos até a Revolução de 30. Desconfio que é só com Vargas mesmo que a construção de um sentimento nacional, ou, para falar com B. Anderson, de uma comunidade imaginada vai ganhar corpo no Brasil. E acredito, também, que muito em função do papel da Rádio Nacional nesse processo.
Vale lembrar, nesse sentido, que diferentemente da maioria dos países latino americanos dos quais o B. Anderson se ocupa bastante em seu livro, o nível de alfabetização da população era muito baixo no Brasil e que, na teoria dele, a literatura nacional é um elemento chave nesse processo de constituição das comunidades imaginadas. Pelo relativo fracasso da nova república na construção dos “símbolos nacionais”, pela barreira do analfabetismo como um empecilho para a literatura cumprir o papel reservado a ela na criação de uma ideia de comunidade capaz de ultrapassar os círculos da elite e pela maneira como a radiodifusão vai mudar esse quadro é que, acredito, a música — popular? brasileira? - vai cumprir, em parte, esse papel de disseminar uma certa ideia de “brasilidade”. O Rafael Saldanha, num outro comentário, apontou muito bem para o fato de que, ainda que não diretamente, os intelectuais brasileiros tenham contribuído pra esse processo, fornecendo os conteúdos que seriam reelaborados tanto na música popular — pensem, sobretudo, na influência que o chamado “pensamento social brasileiro” exerceu em muitos compositores da MPB - quanto, mais tarde, na televisão, por meio da adaptação de obras clássicas da literatura brasileira, de autores como Jorge Amado e Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo, e por aí vai. (Isso pra não falar da contribuição original dos autores de novelas, que mereceriam um texto à parte).
Uma questão que fica em aberto (são muitas, na verdade), no entanto, é: até que ponto essa comunidade imaginada pela MPB e pelo Padrão Globo criou raízes no imaginário do (dito) “povo brasileiro”. E, se criou, em que medida? Com que tipo de adaptações, modulações e inversões? Em que medida ela conseguiu vencer a guerra contra a comunidade imaginada pelos militares brasileiros, por exemplo, sobretudo ao longo da ditatura? Não faria mais sentido pensar que o mais provável é que o que vingou, no fim, foi uma espécie de filho monstruoso dessas duas “comunidades”? Dessas duas “brasilidades”? Mais: como pensar o lugar da música sertaneja nessa disputa pelo imaginário brasileiro? Onde ela se distancia, onde se aproxima daquele imaginário mobilizado nas letras da MPB? Será que hoje não é o caso de dizer que a música sertaneja se tornou mais determinante para a caputura e disseminação do imaginário brasileiro contemporâneo do que a MPB e outros ritmos? Aliás, seguindo alguns caminhos abertos pelo Acauam Oliveira, será que ainda faz sentido atribuir esse protagonismo todo à MPB, frente às transformações recentes da “sociedade do trabalho” no Brasil? Será que, diante do que se pode chamar de um fracasso do processo de modernização do país, o sertanejo não virou, pra tristeza do Safatle, o verdadeiro representante do que há de mais “moderno” — no sentido de atual, sobretudo - no capitalismo tardio? O que há de mais “moderno”, enfim, nesse Brasilzão do “mega-centro-oeste”, pra usar a expressão do Mathias Alencastro? Ou, virando tudo isso do avesso, será que essa “brasilidade” — seja moderna, monstruosa ou sertaneja — tem mesmo essa potência política toda? Será que foi, em algum momento, capaz de constituir uma comunidade imaginada enquanto nação? Digo, será que isso um dia foi tão politicamente relevante quanto volta e meia “o pessoal” gosta de pensar? E, indo mais longe um pouco, se isso fosse, de fato, politicamente relavante, seria necessariamente… bom?
Enfim, pergunta para caraleo.
Algumas derivações
O outro livro do JMC citado foi o Bestializados, do qual a Júlia Manacorda tirou a organização radical dos trabalhadores texteis e sua relação com o samba como uma forma dar, por assim dizer, bases mais concretas à relevância do samba no contexto de uma luta política. Fiquei interessado, mas confessei que teria que revisitar o livro, que li já faz um tempinho bom, pra comentar. Só queria pontuar, no entanto, que esse tipo de conexão menos “imaginada” das comunidades, mesmo quando aglutinadas em torno de manifestações culturais e artísticas, muito me interessa
***
A Raquel Azevedo mencionou um capítulo do Formação do Brasil Contemporâneo, do Caio Prado Júnior, no qual ele apresenta a formação do estado na periferia como uma inversão da forma como esse processo de dá nos centros. Pra ele, explica a Raquel, “ter um território demarcado e ter soberania significam outra coisa”. Respondi, embora não tenha lido ainda o capítulo que ela menciona, que concordava com a leitura do CPJ, mas acreditava que, assim como o JMC, no artigo sobre o “mandarinato” colonial, eu achava que isso dizia respeito mais à constituição do estado à a construção de uma comunidade imaginada nacional. De certa forma, essa leitura corrobora a ideia de que a nação - que é o que está em jogo, no fim, na discussão sobre soberania nacional - vai ser uma preocupação secundária, como se o Brasil tivesse demorado mais a precisar dela para legitimar o poder estatal.
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do inimaginado de nossas comunidades imaginadas
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Tenho dúvidas sérias quanto ao papel da literatura e da imprensa brasileira na construção da nossa comunidade imaginada e desconfio — sem muito fundamento, confesso, mas desconfio — que esse é um motivos que faz o Benedict Anderson evitar o Brasil no Comunidades Imaginadas. Minha hipótese — mambembe, porém persitente — é que a música e o rádio cumpriram muito melhor esse papel — e acho que a tese do Acauam Oliveira sobre os Racionais aponta caminhos pra pensar isso.
Comentei isso no tuíter e rolaram uns comentários bacanas. Em dois deles, o José Murilo de Carvalho foi citado. O primeiro livro mencionado foi o A Formação das Almas. O comentário destacava a importância que o historiador conferia à simbologia construída ainda no império — e, em grande medida, retomada no começo da república — na (tentativa de) construção de uma identidade nacional. Respondi que conhecia o livro e a tese, mas que achava que ela, de certo modo, falava de uma tentativa que talvez não tenha sido das mais bem-sucedidas. Eu trouxe pra conversa dois outros artigos do mesmo José Murilo. No mais relevante pra discussão, que ele discute a importância da unidade ideológica do “mandarinato” colonial - os filhos da elite que, na inexistência de universidades por aqui, recebiam todos a mesma educação em Coimbra - e da aliança entre esse mesmo grupo de burocratas, cuja ênfase sempre esteve mais na administração do estado do que na consolidação de um sentimento nacional, e a elite ruralista, o “coronelato” colonial, muito em função do esforço conjunto dessas duas classes, por assim dizer, para conter as revoltas populares que eclodiram, sobretudo, no período entre o fim do império e os primeiros anos da república (e mesmo pouco antes, em meio dos receio disseminado entre as classes proprietárias e escravocratas frente aos desdobramentos da revolução haitiana). Trata-se, portanto, como o próprio JMC indica, de um processo que diz respeito à consolidação do estado.
Na história do estado-nação moderno, não são raros em que a consolidação de cada um desse polos se dê em momentos distintos. É possível que em grande parte dos casos, estado tenha vindo primeiro e a nação só depois; mas via de regra isso se deu num espaço de tempo relativamente curto, com a nação emergindo para lidar precisamente com as crises de legitimidade do poder estatal. No caso do Brasil, a impressão que eu tenho, e acredito que o texto do JMC corrobora isso, é de que o estado se virou bem sem a nação, se impondo pela força à medida em que as resistências foram aparecendo.
Pelo menos até a Revolução de 30. Desconfio que é só com Vargas mesmo que a construção de um sentimento nacional, ou, para falar com B. Anderson, de uma comunidade imaginada vai ganhar corpo no Brasil. E acredito, também, que muito em função do papel da Rádio Nacional nesse processo.
Vale lembrar, nesse sentido, que diferentemente da maioria dos países latino americanos dos quais o B. Anderson se ocupa bastante em seu livro, o nível de alfabetização da população era muito baixo no Brasil e que, na teoria dele, a literatura nacional é um elemento chave nesse processo de constituição das comunidades imaginadas. Pelo relativo fracasso da nova república na construção dos “símbolos nacionais”, pela barreira do analfabetismo como um empecilho para a literatura cumprir o papel reservado a ela na criação de uma ideia de comunidade capaz de ultrapassar os círculos da elite e pela maneira como a radiodifusão vai mudar esse quadro é que, acredito, a música — popular? brasileira? - vai cumprir, em parte, esse papel de disseminar uma certa ideia de “brasilidade”. O Rafael Saldanha, num outro comentário, apontou muito bem para o fato de que, ainda que não diretamente, os intelectuais brasileiros tenham contribuído pra esse processo, fornecendo os conteúdos que seriam reelaborados tanto na música popular — pensem, sobretudo, na influência que o chamado “pensamento social brasileiro” exerceu em muitos compositores da MPB - quanto, mais tarde, na televisão, por meio da adaptação de obras clássicas da literatura brasileira, de autores como Jorge Amado e Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo, e por aí vai. (Isso pra não falar da contribuição original dos autores de novelas, que mereceriam um texto à parte).
Uma questão que fica em aberto (são muitas, na verdade), no entanto, é: até que ponto essa comunidade imaginada pela MPB e pelo Padrão Globo criou raízes no imaginário do (dito) “povo brasileiro”. E, se criou, em que medida? Com que tipo de adaptações, modulações e inversões? Em que medida ela conseguiu vencer a guerra contra a comunidade imaginada pelos militares brasileiros, por exemplo, sobretudo ao longo da ditatura? Não faria mais sentido pensar que o mais provável é que o que vingou, no fim, foi uma espécie de filho monstruoso dessas duas “comunidades”? Dessas duas “brasilidades”? Mais: como pensar o lugar da música sertaneja nessa disputa pelo imaginário brasileiro? Onde ela se distancia, onde se aproxima daquele imaginário mobilizado nas letras da MPB? Será que hoje não é o caso de dizer que a música sertaneja se tornou mais determinante para a caputura e disseminação do imaginário brasileiro contemporâneo do que a MPB e outros ritmos? Aliás, seguindo alguns caminhos abertos pelo Acauam Oliveira, será que ainda faz sentido atribuir esse protagonismo todo à MPB, frente às transformações recentes da “sociedade do trabalho” no Brasil? Será que, diante do que se pode chamar de um fracasso do processo de modernização do país, o sertanejo não virou, pra tristeza do Safatle, o verdadeiro representante do que há de mais “moderno” — no sentido de atual, sobretudo - no capitalismo tardio? O que há de mais “moderno”, enfim, nesse Brasilzão do “mega-centro-oeste”, pra usar a expressão do Mathias Alencastro? Ou, virando tudo isso do avesso, será que essa “brasilidade” — seja moderna, monstruosa ou sertaneja — tem mesmo essa potência política toda? Será que foi, em algum momento, capaz de constituir uma comunidade imaginada enquanto nação? Digo, será que isso um dia foi tão politicamente relevante quanto volta e meia “o pessoal” gosta de pensar? E, indo mais longe um pouco, se isso fosse, de fato, politicamente relavante, seria necessariamente… bom?
Enfim, pergunta para caraleo.
Algumas derivações
O outro livro do JMC citado foi o Bestializados, do qual a Júlia Manacorda tirou a organização radical dos trabalhadores texteis e sua relação com o samba como uma forma dar, por assim dizer, bases mais concretas à relevância do samba no contexto de uma luta política. Fiquei interessado, mas confessei que teria que revisitar o livro, que li já faz um tempinho bom, pra comentar. Só queria pontuar, no entanto, que esse tipo de conexão menos “imaginada” das comunidades, mesmo quando aglutinadas em torno de manifestações culturais e artísticas, muito me interessa
***
A Raquel Azevedo mencionou um capítulo do Formação do Brasil Contemporâneo, do Caio Prado Júnior, no qual ele apresenta a formação do estado na periferia como uma inversão da forma como esse processo de dá nos centros. Pra ele, explica a Raquel, “ter um território demarcado e ter soberania significam outra coisa”. Respondi, embora não tenha lido ainda o capítulo que ela menciona, que concordava com a leitura do CPJ, mas acreditava que, assim como o JMC, no artigo sobre o “mandarinato” colonial, eu achava que isso dizia respeito mais à constituição do estado à a construção de uma comunidade imaginada nacional. De certa forma, essa leitura corrobora a ideia de que a nação - que é o que está em jogo, no fim, na discussão sobre soberania nacional - vai ser uma preocupação secundária, como se o Brasil tivesse demorado mais a precisar dela para legitimar o poder estatal.