Mas por que falar de nacionalismo agora?
Uma justificativa sincera para a escolha do tema da tese
Quando tive que escrever uma justificativa para o projeto de doutorado, o certo era ter dito: “acredito que essa pesquisa é relevante porque esse assunto me incomoda pra cacete” — mas optei por falar da relação do tema com minha pesquisa anterior, enumerei uma série de eventos políticos recentes que, em tese, na tese, dariam à discussão um caráter de urgência, etc. & tal. Tudo isso era verdade, mas não justificava o desejo de escrever uma tese (isso eu estou tentando entender na terapia, não vem ao caso agora). Porque se a preocupação fosse realmente política, existiam muitos caminhos melhores para tomar, caminhos que talvez fizessem alguma diferença. Porque uma tese de humanas – pior, uma tese de filosofia – por mais que a gente se esforce bravamente para se convencer do contrário, contribui muito pouco, quase nada, para mudar “tudo isso que está aí”. Por mais politizada que ela seja, os efeitos que ela gera são, quando muito, micropolíticos – para a alegria (só) dos deleuzianos. Politicamente, acredito, a única tese que importa é a 11. Se sua resposta para as angústias que o “estado das coisas” suscita é escrever uma tese, é bem provável que você esteja menos preocupado com o “estado das coisas” do que com uma necessidade muito particular de lidar os impactos desse estado de coisas em você — e convencer os outros de que isso é muito importante. É a partir dessa clareza – quase escrevi clareira, Deus me livre – que queria justificar aqui, entre amigos, como cheguei ao tema da – ou à desculpa para – a tese: o maldito do nacionalismo.
O “gatilho” responsável pelo meu interesse pelo nacionalismo, peço perdão pela falta de imaginação, foi um capítulo de The light that failed: a reckoning, obra de Ivan Krastev e Stephen Holmes, publicado na Revista Piauí. O livro, que rapidamente corri atrás para ler, fala sobre a ascensão da extrema direita ao poder, e de suas estratégias para mantê-lo, em países como Hungria, Rússia e Estados Unidos. Nessa época, a questão da extrema-direita já me ocupava existencial (como não ocupar, no Brasil de Bolsonaro?) e academicamente, já que o mestrado tinha sido sobre populismo. As relações entre o populismo de direita e o nacionalismo também tinham começado a chamar minha atenção desde o sucesso do Brexit e do fracasso de Bernie Sanders, nos Estados Unidos, o bom velhinho preterido em nome do sonho nostálgico mobilizado pelo make américa great again de Donald Trump. O que esse textinho de Krastev e Holmes trazia de novidade era um jeito de contar essa historinha a partir da relação de uma nação, a Hungria, com uma referência que ficara no passado – o socialismo da União Soviética – e outra que se insinuava no futuro – o liberalismo da União Europeia. Os autores eram muito felizes ao descrever a maneira como essas duas relações sempre colocavam a Hungria naquele lugar subalterno de quem nada cria e tudo cópia. Um lugar que, em geral, não estamos acostumados – nós, latino-americanos, com nossa longa história de colonialismo e dependência – a associar a nações europeias. Com a queda do Muro de Berlim, no entanto, muitos países europeus passaram pelo doloroso processo de tentar adaptar sua economia e suas leis ao modelo que saíra “vencedor” da Guerra Fria.
Para compreender as origens da presente revolução iliberal no Leste Europeu, deve-se olhar não para a ideologia ou para a economia, e sim para a animosidade reprimida engendrada pela centralidade da mimese nos processos reformistas iniciados na região a partir de 1989. A guinada iliberal do Leste não pode ser entendida separadamente da expectativa de “normalidade” criada pela revolução de 1989 e pela política de imitação que ela legitimou. Depois da queda do Muro de Berlim, a Europa não estava mais dividida entre comunistas e democratas. Em vez disso, dividia-se entre imitadores e imitados. Do confronto entre dois países hostis na Guerra Fria, as relações Leste-Oeste transformaram-se numa hierarquia moral no interior de um único sistema ocidental liberal. Os imitadores erguiam os olhos rumo a seus modelos, ao passo que esses modelos miravam de cima seus imitadores. Não constitui propriamente um mistério, pois, o motivo pelo qual a “imitação do Ocidente”, escolhida voluntariamente pelos europeus orientais três décadas atrás, acabou por resultar numa reação política adversa.
Nas duas décadas seguintes a 1989, a filosofia política do Leste Europeu pós-comunista podia ser resumida em um único imperativo: imitem o Ocidente! Esse processo recebeu diferentes nomes – democratização, liberalização, alargamento, convergência, integração, europeização –, mas a meta que os reformadores pós-comunistas perseguiam era simples: queriam que seus países se tornassem “normais”, o que significava dizer “como o Ocidente”. Isso implicou importar instituições liberal-democráticas, aplicar receitas políticas e econômicas ocidentais e endossar publicamente os valores do Ocidente. A imitação era comumente entendida como o caminho mais curto para a liberdade e a prosperidade.
Empreender reformas na economia e na política pela via da imitação de um modelo estrangeiro acabou, entretanto, por revelar desvantagens morais e psicológicas mais profundas do que aquelas inicialmente esperadas. É inevitável que a vida do imitador produza sentimentos de inadequação, inferioridade, dependência, perda de identidade e de uma insinceridade involuntária. De fato, a luta vã pela criação de uma cópia crível do modelo idealizado acarreta um tormento sem fim de autocríticas, quando não de autodesprezo.
Como não “empatizar”, num nível mais profundo, ainda que rejeitando num plano mais superficial, com essa “animosidade reprimida engendrada pela centralidade da mimese”? Como não sentir no osso esse corte entre “imitadores e imitados”? Como resistir, em meio ao caos periférico, ao canto da sereia dessa imitação “comumente entendida como o caminho mais curto para a liberdade e a prosperidade”? Como escamotear esses “sentimentos de inadequação, inferioridade, dependência, perda de identidade e de uma insinceridade involuntária”, tão recorrentes, tão repetitivos, tão sintomáticos de todo esse processo? Como se afastar do “tormento sem fim de autocríticas, quando não de autodesprezo”?
Essas eram perguntas que eu me fazia muito na época em que esse texto me caiu no colo. Lembro que estávamos no primeiro ano do bolsonarismo, a poucos meses da peste, quando começaram a pipocar, aqui e ali, matérias sobre a “fuga de cérebros” que o país começava a enfrentar. Era gente que buscava refúgio nos países do centro – Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França –, fosse porque as oportunidades – de concurso, de bolsa, de emprego – nas universidades brasileiras estivessem minguando, fosse porque o clima político se tornara irrespirável; fosse, ainda, simplesmente porque era mais fácil cruzar o Atlântico, e/ou trocar o sul pelo norte, do que se engajar numa luta inglória para tentar tornar o clima nos trópicos mais respirável. Mais uma vez, a análise do microclima da Hungria parecia favorecer o mapeamento cognitivo da crise brasileira.
Depois de 1989, o desejo de desfrutar do que Havel chamou de “uma vida política normal” tinha deflagrado uma emigração em massa. Se, na Alemanha Oriental, à “saída” seguira-se a “voz” (para empregar as famosas palavras de Albert O. Hirschman), no Leste Europeu era o contrário: a “voz” vinha em primeiro lugar; a “saída”, depois. De início, a euforia com o fim do comunismo alimentou esperanças de uma melhora radical e imediata. Os europeus orientais acordariam do pesadelo comunista em países mais livres, mais prósperos e, acima de tudo, mais ocidentais. Como a mágica e a ocidentalização não ocorreram, muitos se foram com a família para o Ocidente. (...) A escolha pessoal de partir para a Europa Ocidental já não podia ser estigmatizada como desleal a nações dedicadas agora a se tornar como o Ocidente. Uma revolução cuja meta era a imitação não tinha fortes razões a oferecer contra a emigração para o Oeste.
A utopia da “vida normal”, para muitos professores e pesquisadores brasileiros, estava ao alcance. Mesmo para quem leva a sério a tese da brasilianianização do mundo – e, em grande medida, eu levo – é impossível negar que, para um contingente imenso de pessoas no “sul global”, qualquer ruína de estado de bem-estar, ou simplesmente de estado de direito, ainda tem tudo para ser mais confortável que a sobrevida na periferia. Mesmo se for para continuar se ocupando do Brasil de lá: é mais agradável ser brasilianista que brasileiro. E esse é um caminho disponível, se não para todos, para uma parcela importante da nossa intelectualidade, que dispõe dos recursos, sejam culturais (que podem ser, paradoxalmente, tanto uma formação cosmopolita, com domínio das línguas e a intimidade com as culturas do centro, quanto uma trajetória muito particularista, vinculada a uma identidade cultural ou étnica específica) ou, simplesmente, financeiros. Assim como a ruína do estado de bem-estar ainda tem lá seus encantos, o ideal do cosmopolitismo – ou do globalismo, dirão as más, e as burras, línguas – tem sempre um espaço para receber um tipo muito específico de outro que vem da periferia. Mesmo que para acomodá-lo, muitas vezes, num cercadinho (ou numa galeria). Sim, porque, no fim, ser cosmopolista ainda é bem diferente de ser europeu (ou norte-americano, dependendo, vá lá). O cosmopolita do sul global terá sempre algo em comum com o refugiado ou o imigrante: ambos vão ocupar um não-lugar no centro. Só que no caso dos dois últimos, esse não-lugar tende a ser bem desagradável, além de oferecer muito mais risco.
Antecipando aqui acusações de ressentimento ou inveja, confesso: sim, eu também teria partido, se pudesse. Adoraria ser brasilianista em Paris ou Londres. E para todo mundo que foi, meu conselho seria: não volte. Visite, passeie, mate a saudade, e volte para o seu cercadinho cosmopolita, porque a vida provavelmente é melhor lá. (Evidentemente que o amor, em suas diversas mais expressões, pode complicar tudo isso, mas deixemos o amor de lado). Em muitos casos, esse ressentimento dos que ficam – dos que não gozam da tanta, ou de nenhuma, liberdade de movimento, dos que, por inúmeras razões, estão confinados aos limites da nação – tem engrossado o caldo da extrema-direita não apenas nessa Hungria analisada por Holmes e Krastev. O patriota ressentido não é um fenômeno exclusivo do sul global ou da (semi)periferia da Europa. Eles pululam no centro, também e, por vezes, ameaçam implodi-lo. Foi o que vimos, por exemplo, no Brexit ou na eleição de Donald Trump. Em ambos os casos, a ideia dos leftovers não se aplica nos mesmos termos que no Brasil (ou na Hungria, ou na Polônia, ou no México, ou no da República do Congo). Não é na impossibilidade de emigrar que encontramos (des)razões para a revolta dessa turma, mas na ideia mesma de um cosmopolitismo – ou, para falar como eles, de um globalismo. Um ódio direcionado quase que à ideia mesma de trânsito entre nações e fronteiras. Seja o trânsito do intelectual viajado, que na cabeça do ressentido volta para casa cagando regras que só interessam à “elite globalista” e aos objetivos perversos do “marxismo cultural”; seja o trânsito do imigrante, que na cabeça do “nativo” só está interessado em roubar seu emprego, corromper sua cultura e violar suas mulheres. É no caldo desse ressentimento que o nacionalismo se cria – mesmo onde o ideal de nação não passa, também ele, de uma ruína. Pelo modo como articula demandas não atendidas – faltas – em torno de um significante vazio, o da nação, o nacionalismo tem sido encarado por muita gente como mera expressão do chamado “populismo de direita”, manifestação possível da lógica do político, como concebida por Ernesto Laclau, no contexto contemporâneo. Hipótese que me recuso a encampar. Porque embora na teoria o significante tenha um caráter contingente, na prática, ele emerge como necessário à eficácia do discurso populista, porque o que dá consistência a essa cadeia significante não é o conjunto local, mas a estrutura global: é o arranjo mesmo dos fluxos de capital, trabalho e recursos no capitalismo tardio que (re?)torna o nacionalismo um significante privilegiado. Isso pode soar revoltante para muita gente, eu sei. Como diria Paulo Arantes, talvez um dos mais legítimos (e adoráveis) representantes dos leftovers ressentidos no Brasil: “nada exaspera tanto intelectuais cosmopolitas e poliglotas, imbuindo-os ainda mais da própria superioridade, do que o vazio, a pobreza, a incoerência conceitual do nacionalismo, em contraste com o seu poder político assustador” (Arantes 2006, 29). Um poder político que ele extrai do arranjo capitalista moderno, e continua extraindo de suas variantes tardias, porque “o nacionalismo é fundamentalmente a consequência da tensão gerada pelo desenvolvimento desigual numa economia mundial unificada, como resposta política a uma situação de ‘atraso’ que se tornou tão inaceitável quanto a desigualdade de princípio numa sociedade industrial particular” (Arantes 2006, 25).
A nação, assim como o estado, é parte essencial nesse arranjo que tem o capital como protagonista. E essa característica do arranjo moderno é que parece impor um limite à teoria gramsciana da hegemonia, que está na base da teoria do populismo. Nesse ponto, me parece, a crítica afropessimista acerta em cheio. É que na luta pela hegemonia, as demandas da sociedade civil são direcionadas, em última instância, ao Estado; e – atentem para o ardil – para ser reconhecida como demanda pelo Estado, ela precisa ser reconhecida como demanda nacional – mesmo quando sua origem étnica, no caso das demandas por soberania territorial, ou de caráter internacionalista, como é o caso, hoje, de muitas demandas colocadas pela emergência climática.
A emergência climática, aliás, parece despontar num horizonte cada vez mais próximo como uma esfinge, pronta para devorar “identitários” e nacionalistas numa só mordida. Porque, se a disputa se restringir ao campo da hegemonia, no limite, é o mesmo Estado, igualmente enfraquecido e instrumentalizado pelo Capital, que vai ser convocado para garantir empregos para os patriotas ou para proteger minorias da morte – ou da necropolítica, para usar o conceito do momento. De um lado, desregulamentando, “desconstruindo muita coisa”; de outro, apagando incêndios, muitas vezes literalmente, e tentando preservar meia dúzia de conquistas em meio aos escombros. De um lado, sacrificando Yanomamis em nome da expansão do garimpo, tentando aliviar a pressão da crise de superacumulação como quem espreme um furúnculo – o furúnculo capitalista – com as unhas sujas e se dispõe, pra isso, a pagar o preço de uma possível infecção generalizada; de outro, aparecendo, na última hora, como último recurso para salvar esses mesmos Yanomamis da morte por inanição ou doença, descendo dos céus em helicópteros do exército (que os preferia mortos) e trazendo comida e remédios para conter a crise humanitária e a ameaça de genocídio que se instalou precisamente por conta da indiferença do Estado – essa mão, bem visível, que tanto afaga quanto pune.
Ignorar a complexidade que perpassa essas questões – e a maneira como elas são, a um só tempo, atravessadas e contidas pelo arranjo moderno entre Estado, Nação e Capital é, de certo modo, estar condenado a girar em falso. Se Lula ressurgiu das cinzas, na última eleição, num arco redentor digno de um épico, ou de uma hagiografia, foi menos por ser a cura para todos os nossos males e mais por trazer um curativo, ou um opiáceo, para uma multidão estropiados à beira do estado terminal.
Para sair dessa roda do infortúnio, vai ser preciso mais do que votar, ou sonhar, junto. Talvez, algumas distinções precisem ser levadas em conta com um pouco mais se sinceridade. Distinções impostas por fraturas que, talvez, não possam ser suturadas pela hegemonia, nem articuladas pela cosmopolítica. Fraturas como aquela que separa os que têm algo a salvar dos que não têm nada a perder, para falar como os afropessimistas. Fraturas que não têm a ver com um posicionamento político, mas com um fazer político estruturalmente situado, por assim dizer. É dessa perspectiva que o tema da nação me interessa. Pelo modo como ele nos situa nessa macroestrutura. E pela “gratuidade da coisa”. Pela forma como ele se apresenta como fatalidade, para uns, e como privilégio, para outros. Pela maneira como de sua “incoerência intelectual” devém uma rede tão bem upara produzir senhores e escravos. Reconhecer a força política da nação nada tem a ver com ver nela uma alternativa para lidar com a dominação abstrata do capitalismo, para falar com Moishe Postone. Isso foi basicamente o que o fascismo se propôs a fazer – e não fez, a despeito de todo estrago que causou. É só uma tentativa de não cair no erro de que certas coisas vão simplesmente desaparecer se a gente parar de acreditar nelas. A “questão nacional” ainda é, e tem tudo para continuar sendo, a grande “pedra no sapato” da esquerda – e esse problema, a new left e o pós-marxismo – desculpa, Laclau – não deram conta de resolver. E, não, não tenho a menor expectativa de revolver isso com uma tese (importante manter a megalomania sob controle) – até porque, voltando ao primeiro parágrafo, acredito que a única tese capaz de resolver alguma coisa é a 11. Se me ocupo da “questão nacional” é para stay with the trouble.
Bibliografia
Arantes, Paulo. “Nação e reflexão.” Em Moderno de nascença: figurações críticas do brasil, por Benjamin Abdala Júnior e Salete de Almeida, 27-45. São Paulo: Boitempo, 2006.
Krastev, Ivan, e Stephen Holmes. The light that failed: a reckoning. Londres: Penguin Random House UK, 2020.